quinta-feira, 23 de junho de 2016
segunda-feira, 20 de junho de 2016
Florir no escuro: novo livro de poesia de Chico Lopes
Florir no escuro
(Penalux, 2016), segundo livro de poesia do escritor, poeta e artista plástico Chico Lopes, não só oferece ao
leitor uma continuidade temática e formal de seu ótimo Caderno Provinciano
(Patuá, 2013), como também amplia seu recorte lírico a partir de alguns outros
temas e símbolos verificados em suas narrativas ou, ainda, nas pinturas do
artista, além de experimentar outras formas de construção poética.
Dividido em quatro seções, as
duas primeiras ("Verme Ardente" e "Horas a fio") reiteram a
poética de seu livro de estreia na poesia. Quanto à forma, há o primor na
construção do verso, segundo a máxima de Verlaine de que "poesia, antes de mais, é
música", embora o ritmo não se prenda, tal como propuseram os simbolistas,
a nenhuma amarra de métrica regular. Por isso mesmo, o soneto "Ilimitado",
por exemplo, como o próprio título já sugere, tem uma forma não-ortodoxa em
métrica e rima. Contudo, a cadência de cada poema comunga com o conteúdo (como
se espera num bom poema), destacando-se a recorrência duma espécie de canto de
imprecação, uma "cropologia sacra", que se constrói justamente na
dialética entre o sagrado e o profano: "Estátuas se erigem do
excremento,/miasmas se convertem no etéreo,/ a música quer ser limpa e o sopro
erra/entre nesgas de céu e sete palmos de terra"(...)"Um quê de
Paraíso comicha e espicaça/se revolve inquieto, cúpido roedor./É um verme
ardente. Quer chamar-se amor".
Como foi apontado por Cleber
Pacheco na orelha do livro, Florir no escuro tem uma
familiaridade, sobretudo nessas duas primeiras partes, com as Flores do Mal baudelaireanas e também
com a escatologia do ímpar Augusto dos Anjos. Porém, tenho que destacar ainda o
diálogo com um dos maiores poetas brasileiros, o genial Cruz e Sousa. A
intertextualidade se deslinda na leitura comparada com os poemas "A torre de ouro", "A
flor do diabo" e "A ironia dos vermes", do nosso maior simbolista.
"A torre" de Chico Lopes erige-se como o lugar do isolamento de quem
"escalou o impossível/e foi isolar-se na torre/para melhor entender",
mas a luz que brilha lá em cima é tão excessiva e inumana que
dissolve o enunciador "num clarão estupefato". Em afinidade com o
poeta Cisne Negro, o alheamento, a incomunicabilidade,
a incompreensão sugerem-se, nos versos de Lopes, por símbolos etéreos como a
névoa, a fumaça, "As coisas vagas, ausentes", "Uma angústia de
querer/o possível de outros mundos".
Ouso dizer que a poética de Chico
Lopes comporta uma consciência cristã atormentada que, a par da falsidade dos
símbolos religiosos institucionalizados, busca superar essa degradação
rearranjando tais símbolos pela via profana e escatológica. Medo, assombração, culpa,
solidão e desassossego — que, no fim das contas da condição humana, reduzem-se
às questões hiperbólicas e complementares de amor e morte — são enfrentados
pelo poeta afundando-se ainda mais naqueles sentimentos movediços, numa espécie
de redenção às avessas. Desse movimento brota a ironia, um estandarte de quem
se sabe perdedor antes mesmo de começar a batalha.
Há muito o que dizer sobre os
poemas das duas primeiras seções, o que exigiria um trabalho de maior fôlego,
provavelmente mais completo se relacionado à produção narrativa do mestre Chico
Lopes. Mas quero me ater sucintamente às duas últimas seções do livro, que são
relativa novidade em sua poesia.
Por um lado, apresenta o novo em
formas que o autor ainda não tinha explorado, como a (convencionalmente chamada)
prosa poética nas duas partes, "Asas" e "Memórias", e a
versificação popular, quero dizer, a prevalência das redondilhas, cujo ritmo
está entranhado em nossa cultura ibérica, no poema "Felicidade
Antiga", que está dividido em 12 segmentos e domina o conteúdo da última
seção, "Memórias".
Por outro lado, quem conhece a
obra do autor, não só na literatura quanto na pintura, está inteirado da importância
do pássaro, que figura em sua poética até as raias do mito. O enunciador se
transfigura em pássaro, tanto no encolhimento ("olhinhos de sono, crista
tombada, conforto de asas fechadas") quanto na sina de aves noturnas sem
descanso, que "estão condenadas a não poder pousar e sua maldição é voar
por toda a eternidade. Rarefeitas, têm saudade obscura da terra e o chão é o
paraíso a que aspiram". Os passarinhos de Chico Lopes não são apenas
belos, ternos, delicados, trigueiros, singelos ou símbolos de liberdade; sim,
eles são também isso, mas, sobretudo, o enunciador afirma: "Faço-os
arbitrários, ferindo noções exatas de ornitologia, porque os quero líricos e
inclassificáveis, como eu". Ou seja, esses pássaros são a matéria poética
de que o eu-lírico quer se fazer, mesmo que sejam espécimes hostis,
aterrorizantes e imprevisíveis, tais como os de Hitchcock.
Quanto à última parte, o autor
trabalhou um tema muito caro a todo poeta que se preze, de românticos a modernistas: a nostalgia da infância.
Existe nessas memórias uma visão um pouco mais otimista que, embora não seja ingênua, pois
sabe que a lembrança das alegrias e a reconstrução do passado são movimentos
ilusórios, consegue assim mesmo transfigurar poeticamente a vida bela (em plena melancolia) numa
pequena cidade do interior em meados do século passado. Tenho a impressão de que o menino recriado no poema "Felicidade antiga" é a chave pra compreensão duma dimensão essencial na prosa do autor. Aflora nesse caçula uma sensibilidade, um desejo de expressão, um veio passional que não se adequa ao modelo masculino padrão e aos imperativos de um entorno social acachapante. Numa realidade interiorana de machões estereotipados, pros quais o gesto prenhe de carinho é interdito e a sensibilidade artística podada nos primeiros anos, cabe ao menino frágil, mas resiliente, tão só florir no escuro, seja pela fantasia na sala escura do cinema, seja pelo recolhimento em que os primeiros versos surgem.
Mas vou parando por aqui. Pretendo ler alguns poemas do Chico com mais acuidade em breve. Ao leitor que teve a paciência de me acompanhar, só tenho a dizer que Florir no escuro é leitura recomendadíssima.
Mas vou parando por aqui. Pretendo ler alguns poemas do Chico com mais acuidade em breve. Ao leitor que teve a paciência de me acompanhar, só tenho a dizer que Florir no escuro é leitura recomendadíssima.
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