quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Corcel afogueado, ou o périplo de Orosmindo

     
Cavalo em uma paisagem, Franz Marc, 1910


Não vim de Rio do Prado por sonho de vida próspera, com a certeza de enricar, ou por deslumbre com as luzes do sul. Nada disso não. Vim por vir, a convite, e sem muito rebuliço. Minha irmã mais moça, Geralda, em Sertãozinho já pra mais de cinco anos, escreveu naquela carta: “Arreda o pé dessa terra sem muito futuro e vem cá. Aqui não abunda como contam, mas também não se carece como aí. Quem sabe não arruma moça honesta a formar família? Trabalho já tem arranjado com o Seu Chiarelli. Ele está precisado de alguém pra cuidar dum sítio, ordenhar punhadinho de vacas, tratar das galinhas, dos porcos, dos gansos; vigorar horta, gramagem e pomar. Aguardo resposta de urgência”.

Reparei no feitio do convite que era pra decisão de repente. A trabalho, qualquer que pesado, nunca me neguei. O dia cheio na labuta diminui o desejo das folganças muitas da carne, assim sempre me palavreava o pai. E mais pra mim ele reponteava o fraseado, por ver minha disposição de natureza pelo gozo de prazeres com mulher. Essa que sempre foi a maior tentação minha desde bem moleque. Não quis saber de iniciação barranqueira com animal de cria, não. Com doze anos fui decidido sozinho por mulher formada em casa de tolerância. Primeira vez fui objeto de caçoado, quando juntei bem umas pecúnias e fui procurar casa de Dona Abadia, que cuidava de punhado de mulher-dama. Não era nem noite, quando as sombras encompridam, cheguei lá, passei pela portinhola aberta pra rua, entrei pela porta da frente escancarada e vi duas moças pintando unha enquanto assistiam a novela. Falei com aquela voz mal firmada de rapazola, “quero escolher mulher pra satisfação”. As moças repararam em mim, olharam uma pra outra e quase se mijaram de rir. E então a parda de cabelo sarará se aprumou e disse: 

— Ô minino, não acha que veio cá muito cedo não? 

Ao que perdi um pouco da confiança e olhando pros pés descalços: 

— Já faz escuro... e se chego pra mais tarde em casa levo reio. 

Percebi que elas amoleceram. Pra mim, (me perdoe, senhorita, a pura protérvia) mulher, quando amolecida, é tal qual barro pra moldar, é só acertar a mão — isso foi trabalho cedo aprendido e o único a que me disponho a qualquer tempo sem obrigação. 

Mas sem perder o rumo da prosa, quando me apercebi, estava já de trouxa pronta. Família de nove filhos amaina a resistência de pai e mãe, sobretudo quando há carência de atividade rentosa ao redor e sobra vontade de viver ventura de cidade maior em região que dizem mais próspera. Mas o caroço de meus motivos não era figurar canaã, que não sou marionete de esperanças. Não sei por que nunca fui, embora criação justa cristã. Sou de falta de sossego. Careço movimento. Então parti com umas duas trocas de roupa, pote de paçoca salgada e o cantil de couro de bode, porque sede é o que mais incomoda quem toma rumo de estrada sem saber como e quando chega ao destino. Arranjei primeira carona num caminhão de granja até Teófilo Otoni; daí pra baixo, nos mais de mileduzentos quilômetros, nem vale a pena relato de perrengue, debaixo de sol refletido em ondas no asfalto e chuva de encharcar as ventas, mal dormindo em posto e praça, naquele janeiro de 1989, até arrastar o corpo moído e torrado pela Avenida Antonio Paschoal, passar pela rodoviária e subir anguloso até a Praça 21 de Abril, em Sertãozinho. Queria ver o miolo da cidade, pontear o centro de onde todo o resto irradia, a fim de ter medidas de comparação com as pontas, as arestas, que são os lugares onde real paira meu interesse em cidade que vai crescendo como raízes adventícias.

Busquei a carta de Geralda, bem guardada no embornal. Ali ela havia deixado número de telefone. Dei prosseguimento no arranjo de ficha e discagem de orelhão. Tocou muito seguido até eu ouvir voz de mulher, não de minha irmã; era d'outro tom e melodia. Dei referência de prontidão pra evitar susto ou conversa esbarrada. 

— Quem lhe fala é Orosmindo Abdias dos Reis, vindo a convite de minha irmã Geralda Jacira dos Reis, e já presente nessa comarca sertaneja. 

Ouvi eco de riso e resposta meiga de "espera um pouquinho, por favor, que vou chamar".



Não tardou pra logo pegar costume e formular compreensão da terra. O sítio referido por minha irmã era uma das propriedades do Chiarelli, que respondia por Júlio em primeiro nome. Peneirei os grãos da história familiar do meu então patrão. O pai fora pioneiro em moer cana, que vertia em açúcar e álcool, e disso sugou riqueza. Dos cinco filhos que herdaram a usina e as vastas terras, o primogênito, de nome Rodrigo, mas conhecido pelo diminutivo, era o mais atinado pra negócios. Abraçara um projeto do governo na crise do petróleo pra fundar o clã do álcool — isso me resenhou um velho ladino durante partida de bocha numa praça onde ia carpir informação. A usina se tornara rio de muitas veredas lucrativas, entre elas metalúrgica, distribuidora de bebidas e lojas de automóveis. A família barganhava nas altas esferas.

Júlio, meu patrão, era o rapa do tacho. Caçula mimado, mulherengo caprichoso que, em adolescente, lhe apetecia circular pelos bairros de pobre montado em carrão ou motocicleta pesada a fins de arrastar mocinhas de esperanças novelescas. Contava cabaços rompidos, diziam. Contudo, o que sobrava em espírito desbravador de mocinhas casadouras, faltava em rigor nos estudos e em paciência pras atividades de esmiuçar pensamento. Ademais, relatavam, não sei se por despeito, que seu fogo de macho era curto, era tão ligeiro quanto suas máquinas, que deixavam visgo de pneu e rastro de fumaça nas ruas e vielas.

A rotina de garanhão sem cerca foi, porém, esbarrada pela família. Meu informante, o Rubim, soldador aposentado também conhecido na bocha, jura que tal fim se deveu a um escândalo abortado, melhor dito, um aborto que se faria escândalo não fosse uma dinheirama pra convencer os pais da menina a emudecerem. O procedimento ocorrera em clínica de Ribeirão Preto, com médico de confiança dos Chiarelli. Em Sertãozinho não quedaram. Que o risco de resgatar a história devia ser apagado. A família mudou-se, arrematou Rubim num lance de bola vermelha, pra Pedro Juan Caballero, onde abriram portinha de comércio.

E Júlio firmou casamento repentino, aos 22 anos, depois de namoro estival, com a filha única do Dr. Sampaio, promotor público, parceiro de Rodriguinho Chiarelli em pilotagem de helicóptero e figurinha repetida nos jantares servidos pelo usineiro. À época, Lúcia, mas chamada Lucinha Sampaio, estava nas metades do curso de Odontologia, embora seu consultório já estivesse sendo montado em ótimo imóvel na rua Aprígio de Araújo.

A parte que me cabe nessa história tem princípio dez anos depois. Naquela carta de Geralda vislumbrava eu no Chiarelli um galegão gordo sitiante, que vivesse das benesses da pequena propriedade. Engano. O sítio era sede de fazenda. Me explico: Júlio recebera do pai terra vasta pra plantio de cana, a ser moída depois na usina familiar. Avesso ao trabalho de administrar a plantação, Júlio arrendou-a, mas manteve a sede sob seus cuidados por escolhidos motivos. Primeiro, conforme presumi, o de manter alguns animais de criação pro gosto e agrado de Lucinha, que se enlevava na beleza justa daqueles bichinhos. Ela fazia questão de, em presente, dispersar a quirela pras galinhas e angolas, escovar o pelo e trançar as crinas do mangalarga Reluz, tirar leite das holandesas Sula e Miranda, entre outros carinhos e caprichos; os gestos de Lúcia como que saíam de abscôndito relicário. Segundo, e este o motivo reinante, conhecido de todos, a presença da represa onde Júlio praticava seus esportes aquáticos, no jet-ski ou nos esquis aquáticos puxados por arretada lancha, quando levava piloto. Coube a minha serventia morar no sítio e deixá-lo nos conformes pra receber o casal aos finais de semana, vez ou outra acompanhados de visitas. O último caseiro havia voltado com esposa e dois meninos pra terra sua de nascença, perto de Ilhéus, por herança de um pedacinho de terra. 

Foi quando minha irmã fisgou a oportunidade e me pescou com a dita carta. Ela achava que Rio do Prado me desperdiçava. Me via como irmão destoante, mais solerte que os demais. Geralda cozinhava pros Chiarelli na casa da Nova Sertãozinho, bairro da gente endinheirada. Cuidava do café e do almoço, mas seu tempero, bolos e doces lhe valiam um pagamento razoável e podia sair às três da tarde. O marido era vigia de empresa e vivia rotina de coruja. Mas a dedicação e sina dela era mesmo com o menino Claiton, meu sobrinho de quatro anos, atacado de bronquite desde novinho. Decidi não interferir muito naquela rotina em que minha irmã, embora reclamasse, construíra seu orgulho de gente honesta que paga as contas e vive ordinários problemas. Comecei a plantar minhas próprias raízes e fui me espalhando onde elas pudessem alcançar.

Assim sucedeu que logo tomei jeito com as tarefas do sítio. As necessidades do pomar, a poda dos verdes, a limpeza e manutenção das dependências, o cuidado com os animais, seguindo certo as recomendações de Lucinha e do doutor veterinário, que eu fingia escuta de novidade, pra agradar. O lugar ficou um brinco, aprazível e vivo de brilhar os olhos. 

Fisguei mais ainda o rebrilho nos olhos de Lúcia na confiança ganhada junto ao mangalarga. Conquistei Reluz. O começo é observação de orelhas, narinas, cauda, patas, sobretudo olhos — aos quais nada escapa —, e, depois, a aproximação macia, mas confiante. De sobejo, torrões de açúcar, espigas escolhidas, cuidado sincero ofereci, e fui aceito. Embora de bom grado, pois queria dividir respeito com aquele cavalo imponente, a amizade do animal me valeu mesmo o encurtar distância com Lucinha. O patrão não tinha paciência pra desvelo de animais. Desconfio que até medo fosse, mesmo. Ficava ajustando motor de jestskis, depois se jogava na represa, indiferente ao fora d'água, montado no brinquedo, a gente ouvindo de longe os recortes de zunido. E a mulher, de primeiro demarcando espaço, séria patroa, foi atinando agudo interesse por meus costumes e saberes de campo. Como conhecia o tempo de cada planta? Tratava de cavalos em minha terra? Não achava que os bichos conseguem ver nossa alma? A cada pergunta, descobria nela uma vontade verdadeira de saber. Não estava motivada por educação, tédio, nem mesmo solidão, ou o disfarce era muito vero. Pois bem. Me dispus ao lídimo diálogo. Dizia tudo o que sabia sobre a terra e os animais de domesticação, rotina minha em família, buscando sempre a palavra precisa. Lúcia figurou-se a mim uma mulher que eu não desejava possuir, mas cuja beleza esguia e companhia plena me compraziam nos recônditos. Ao que antes não fosse razoável amizade com moça desejável, foi o sucedido. Amizade bem nutrida nos fins de semana, em remanso de conversas vivas e labor suave.

Durante semana, me ajustei pra conduzir qualquer circunstância; com tudo arrumado e seguindo ordenado fluxo, antes do sol a pino, o grosso do trabalho já concluído. Hora de tocar à cidade. Júlio me deixara uma mobilete pra emergências. E no depósito, galões de gasolina de sobra. De primeiro, quando asseverei desconhecimento de pilotagem, o patrão debochou:

— Nunca andou de bicicleta? A diferença é o motorzinho, que você controla aí na mão. Em todo caso, do chão não passa.

Avexado, mas sem figurar, eu disse que, ao carecer a serventia, montava. Apenas testei a bicha quando sozinho. Tombos bestas. Poeirão levantado. Porém em pouco prazo a bicicleta roncante domada. Dali adiante, o caminho pra cidade ficou questão de quarto de hora. Tomar sorvete de coco queimado no bairro São João, ver treino no campo do Alvorada, contemplar moças da patinação artística no Docão — tardes de plenas vontades. Inclusive arrumei o chamego de viúva-moça, a baiana Irene, que tocava um carrinho de cachorro-quente lá pelos começos da Av. Nossa Senhora Aparecida. Contudo, de costume, a parada era mesmo no Horto, nos limites da Cohab III. Ali uma praça repleta de mesinhas de carteado, dama e dominó; uma cancha de bocha; olor bom de eucalipto; um punhado de aposentados da cana fugindo das senhoras, dos netos, do vazio do ócio. Em meio a comprovantes de pagamento da aposentadoria e ao par de jornalecos citadinos, a prosa se preenchia do que corre à boca pequena. 

Adentrei o círculo aos poucos, pois vislumbrei que a gente de fora, mormente os do norte, padece bruta desconfiança. Ao flagrar paisagem, vi e ouvi conteúdo de gaiolas penduradas. Embora aperreado por aquelas asinhas presas, abri sorriso e perguntei, em vênia, quem sabia de canário da terra cantadorzinho pra negociar. Quando me replicaram se eu sabia lá alguma coisa de passarinho, puxei o gatilho das treinadas imitações de curió, igarassu, bigodinho, trinca-ferro, corrupião e canários vários. Plateia minha. Caminho aberto. 

Quem decidiu real admiração por mim foi o Rubim, cabelos já todos banhados em prata, sempre besuntados na brilhantina, bigode penteado, olhinhos pequenos e inquietos, voz rouca e incansável. Me dizia que eu era diferente dos outros paraíbas risca-faca. Que demonstrava estirpe instintiva. Que eu já estava até falando igual a paulista, mais esbarrado, carregando o erre. De minha vez, disfarçava o rancor pelo avilte aos que vinham de longe se gastar na cana, retinha apenas os elogios pra meus ganhos — sagaz de disfarces? 

Sim, como a moça já sabe, e redigo, foi o Rubim que me deu a conhecer o que o povo especulava sobre o patrão e a família Chiarelli.

— É, Mindo, — assim ele passou a me chamar — se fizer o trabalho direitinho, não se intrometer onde não for chamado, pode levar vida mansa até quando Deus quiser. Tem tudo no sítio, casinha ajeitada, água, luz, geladeira, condução pra passear, e até salário. Quer mais o quê da vida?

Se o Rubim soubesse meu avesso à paragem, se descortinasse o interesse que não vige em matéria estática... Mas o bigodinho renitente, feito pássaro coleirinha, só vascolejava as supérfluas vivências, as tramas diretas do visto e ouvido à língua, carente de crivo. Apois, melhor que assim fosse.

E dia foi que, em meio à aragem em tarde de agosto, no intervalo de farfalhar sobre eleições vindouras, Rubim, descascando uma laranja ao canivete, soltou:

— Sua patroa, D. Lucinha, deve de ser infértil; já virando década de casada e nada de criança. 

Enquanto mirava os chupavinhos caídos das sete-copas, alguns riscados de dentes de morcego, abriu-se-me essa lacuna, os porquês da ausência dum rebento, com a acintosa necessidade de vasculhar valores de sentido. 

E o tempo escorreu até chegarmos aos fins do inverno. Seco. Há tempos o céu cinza recoberto de fuligem de cana. Safra é sempre assim, me disseram. Ficou difícil conservar varandas limpas. Careceu manha pra manter o verde gramado. A terra clamava chuva. Mas a me secar qualquer outro pensamento, Lúcia, a ver que, no reparo fundo, olhos de candura resignada. Então veio a tarde em que tateei melindroso pra assuntar meus repisados reboos. Ela, com mel de jeito pra todas as crias, carinho evaporando do interior aos gestos, haveria de ser modelo de mãe, falei, enquanto misturava a ração do Reluz. A feição dela demudou. Com assustadiça defesa, fingindo desimportância, rumou poucos passos à baia do equino:

— Orosmindo, você vai dando lado pra boataria do povo? Sua irmã já me contou que você anda de vadiagem pelos bairros da cidade...

— Pois viu maldade no meu comentário? Digo o que vige no fundo do meu sentir; o talhe de D. Lucinha é de gestar amor, é de quinhoar beleza ao cuidado por broto do próprio ventre.

Ela, que acabara de liberar o fecho da baia, a fins de levar Reluz ao piquete, esbarrou, largou as rédeas, as amêndoas dos olhos súbito aljofradas, o corpo fechando-se feito planta dormideira até encorrugir sentada no tamborete ali largado. 

Acheguei-me, real prestimoso à ferida dela exposta, de joelhos, pra equiparar altura, o Reluz assentindo, testemunha de pescoço mexido abaixo. Eu era de fora, despegado, ave de passagem, ouvido leve de desabafo; medo não carecia. Porém, vi que temor não era; tristeza calada, sim, era; desgosto rescaldado, lume resistente ao sopro gelado da decepção.

— Pois bem, meu amigo, de você nada se esconde... Essa é minha sina, viver com o ventre a esperar. Espera em vão... — a voz vinha dos esconsos, compassada — Júlio não aceita filhos. Apenas ele, e mais ninguém. Fez uma cirurgia, esterilizado, semente que não germina. Na insensata desconfiança, ainda me obriga a tomar as pílulas. Ele mesmo controla, dia a dia, todos os meus ciclos... E todos me creem seca, infértil, incapaz de gerar vida... Eu, tanto a dar de mim, tanto afago guardado... 

— Acaso tu não tens boca e asas pra fazer ninho em outras paragens?

Reluz, subitamente, assoprou, começou raspar cascos na terra batida, recurvou as orelhas pra trás. Eu firmei ouvido, aguçareiro.

— Orosmindo, vivo em pé de ameaça... Se contar qualquer coisa, ele diz ter provas contra meu pai pra deixá-lo apodrecer na cadeia. Ou, se preferir, estala os dedos e faz sumir quem ele quiser. Não duvide. Você não conhece essa gente... — Lúcia sobressaltou-se; eu já era aguardo.


Uma sombra comprida alcançou nossos pés.


— Que é que tá fazendo aí com minha mulher, seu caboclo filho duma égua? — era Júlio vestido em roupa de borracha, ainda pingando água da represa, vindo acintoso disparatado em nossa direção. 


Ouviu-se silvo sibilado de serpente? Um relincho de priscas eras assomou, imperioso. Reluz se interpôs. O pelame castanho escuro rebrilhou nos músculos tesos. Narinas extremosas de dilatadas. O impulso, das entranhas da terra. Patas dianteiras em riste, rabiscando ódio no ar. — Cavalo do demo!... ­— últimas palavras. Patas pesadas pisando peito como se pilão. O corpo de Júlio tombado e Reluz repisando veztrês, tripúdio, corcel afogueado de ventas e cascos. Sonido de ossos esmiuçados. Sobrara um invertebrado sob a pele de borracha? 

Então o mangalarga serenou. 


Seguiu-se na cidade comoção ensaiada a partir das novas de morte do Chiarelli mais moço. Assunto de animar muitas rodas em siso social, camuflado pesar. E extravasou recantos. Relevo nacional. 

Investigação muita; horas de cadeira mais ainda, em repisados depoimentos. Dr. Sampaio contratou advogados de altura pra garantir só esclarecimento. Ensaios. Fiquei guarnecido de tabela. Enfim, suma trágica: fatalidades. Júlio, fora de seu costume, decidira, por conta, dar alimento e soltura ao cavalo. Este, variado de loucura ou tomado de estranheza? Lúcia, na estufa de flores, e eu, de arranjos no depósito, apenas sondamos grito. Corremos só pra desatar desesperos — Júlio jazia às patas de Reluz. 

Decidiram sacrifício do altivo equino. Expiação injusta, ideia minha de relampejo, mas, no meio dessa viagem nossa, refiz meu conceito. Reluz sendo herói, banhou com seu sangue honrado a terra vermelha. Ora, pois, que assim o causo ganha garbo, não acha a senhorita? Ah, sim, sim, Lúcia... Segredei de propósito, a ver se não havia perdido o desvelo dos ouvidos da moça... Lucinha partiu além-mar, passar tempos com tia que mora em terra chamada Andaluzia, escolhida vida em Sevilha. Volta mais, não. Achismo meu. E cá estamos neste ônibus destinado ao estado sulista do Paraná. Venho curioso de friagens. Veja, lá, pela janela: eita! que o mundo não devirou belos trigos amarelos? 

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

CANÇÃO NOTURNA



Girl in a white dress, Lucien Freud, 1947

Naquela manhã de sábado, fora de seu costume, ela sugeriu timidamente um hino durante o louvor — a meia hora de cânticos que mantinha os membros ocupados até o início da sequência litúrgica do culto. O moço que conduzia a música esticou o pescoço, apontando o ouvido, não tinha escutado, a irmã repetisse, por favor, um pouco mais alto. Ela resvalou ligeira e alternadamente as mãos suadas na saia — onde estava o lencinho? —, as mãos úmidas, frias, a ponto de pingar durante o martírio dum trivial cumprimento, quanto mais na insensatez de abrir a boca em público.  Puxou então ar, no afã de a voz lhe sair mais segura, e repetiu "483, Rude Cruz". Num sorriso pronto, recurso de jovem líder, a fim de disfarçar a má vontade com tal canção de ritmo lento, arrastado, o rapaz alisou a gravata puída e soltou "ótima escolha", e ligeiro encontrou a página entre o maço apoiado na estante retrátil. O ruflar das folhas misturou-se ao das asas assustadiças de pombos lá fora. Mas os irmãos tinham que transigir com a lentidão da organista, que molhava o indicador na pontinha da língua e apertava os olhos gastos, caçando a partitura. Não tinha mais ninguém que tocasse instrumento, então era preciso ainda acompanhar os acordes malfeitos, a falta de compasso, as notas intermináveis ao som nasalado e sombrio do órgão elétrico, de algum modo conferir uma réstia de harmonia àquele punhado de vozes que tentavam acompanhar a música canhestra. Irrompia o agudo de algumas senhoras, em ondas de taquara, vozes esganiçadas, contrastando com o murmúrio dos homens, em grave tom abaixo, quando não completamente fora do tom. E Marlene se unia ao lamúrio, a letra de cor, "levarei eu também minha cruz/Té por uma coroa trocar", com o olhar fixo no teto manchado de infiltrações, talvez procurando nos borrões negros, esverdeados, um sinal, a almejada mensagem dos céus de que enfim chegava o momento.

A igrejinha fora erguida em meados da década de 1950, e quase nenhuma mudança desde então. Algumas demãos de tinta, um reparo nos bancos, uns pares de telhas trocadas, o mínimo. No bairro, era apenas mais uma igreja de crente, em meio aos vários salões alugados nos últimos anos pras dezenas de denominações. Não angariavam novos conversos como as outras; faltava o êxtase pentecostal, o frenesi coletivo, a catarse das línguas estranhas e previsíveis, as músicas com clímax subindo de oitava no refrão, repetido como mantra, até o corpo entrar em transe, aquilo que nomeavam a descida do fogo do espírito santo. Não, não, os cultos ali eram moldados em rito discreto, fleuma, améns cadenciados durante as orações, algo de real decoro e do agrado do altíssimo, como se repetia com orgulho solene. Poucos membros, todos pobres, um ou outro remediado, receita exígua com dízimos e ofertas.  Mas ali estava o povo escolhido de Deus; qualquer dificuldade, inclusive a de manter aquele lugar sagrado, não era prova dessa seleção?

Frequentavam a igreja três gerações de fiéis, a maioria com algum grau de parentesco, e geralmente a ascendência determinava a hierarquia de cargos, distribuídos nos chamados ministérios, cada qual com seu respectivo status e autoridade pra repreender qualquer outro irmãozinho que fraquejasse na fé ou se desviasse da conduta rumo à santidade. Ostentava-se nas pregações e pesados estudos bíblicos um orgulho de, num mundo prestes a ter fim, guardarem a verdade, a única a que qualquer indivíduo, não importando raça, nacionalidade, condição econômica, deveria se submeter se quisesse salvar-se da perdição eterna. E ai daqueles não convertidos até o fechamento da porta da graça.

Marlene era uma fiel de berço. A mãe, dona Eurides, exemplo de fervor e rigidez, imprimira na filha única o temor de Deus, antes mesmo que a menininha compreendesse quem ela era. Eram apenas as duas. Não conhecera o pai, e quase nunca a mãe falava sobre ele; quando surgia, por descuido, o nome dele numa conversa, emendava umas frases feitas, "seu finado pai cavou a própria cova, minha filha; não aceitou a mensagem, perdido pra sempre". Ouvia de terceiros, em fiapos de histórias que buscava alinhavar: Romero fora jovem com pose e ares de artista, cantava sob lona de circo, em botecos, figura de animar a noite, sorriso de fazer as meninas cochicharem, alvoroçadas, entre risinhos, reivindicando a exclusividade dos olhos azuis semicerrados. E, entre pares de oferecidas, Eurides como escolha pra morar no aluguel duma casinha de fundos. Onde a mãe o teria conhecido? Como despertara a atenção do rapaz trigueiro? Que artimanhas, segredos de mulher, ela tivera na juventude? Impossível. Não conseguia pensar na mãe como figura sedutora, que exalasse qualquer convite à carne. Pra ela, sempre a imagem sisuda, os lábios finos irremediavelmente rachados, as poucas roupas de tons sóbrios, terrosos, cobrindo todo o corpo; os cabelos, que já lhe deviam chegar quase aos pés, sempre no coque, envolto numa redinha. Mas era fato que, ao lado de Eurides, num ano qualquer, há quase três décadas, Romero parecia ter tomado rumo de homem responsável; deixara pra lá a bobagem de artista, alugara uma portinha comercial onde tocava uma tinturaria, lavando e engomando camisas e ternos de gente importante da cidade. Trabalho de gente honesta, e sem depender de patrão. Porém, o espírito aventureiro, a frustração silenciosa e crescente, mais a bebida, esta sobretudo, o conduziram errante numa noite pela estrada, sem dizer adeus, sem dizer palavra, apenas com a roupa do corpo e o dinheiro das contas que estavam pra vencer. Abandonou Eurides — sabia da gravidez? —, caiu no mundo provavelmente como trovador andarilho, cantando em troca de pouso e copo cheio, até o excesso e a estrada minguarem a voz e, segundo o desfecho da fábula, enterrado na capital.

Não houve outro homem na casa. Quase trinta anos desde a partida daquele que, pra Marlene, não passava duma sombra errática, uma sombra a pairar sobre o conhecimento possível a respeito da mãe, a cristã fervorosa, inclemente, criatura à imagem do deus belicoso do velho testamento. A nova Eurides despontara quando, durante a gravidez, recebeu a visita duma dupla de rapazes de fora que, ao fim de apresentação convincente, ofereceram um livro com promessas de saúde a partir de plantas. Não venderam o livro, mas a presentearam com um outro que narrava em pormenores o fim do mundo, e retornaram diversas vezes até encerrarem um estudo bíblico completo, arrematado com um apelo de conversão. O momento era propício. Uma luta invisível entre o bem e o mal conferia sentido ao sofrimento e à dor do abandono. Eurides veio a batismo e passou a frequentar a igrejinha recém-inaugurada no bairro. Já experiente na fé, membro atuante na comunidade cristã, ela passou a se interessar muito mais pelo poder divino de consumir a fogo todos os ímpios, pândegos, messalinas, sodomitas, escarnecedores, adoradores de Baal, aqueles gentios despudorados pululando ruas, bares, banheiros de rodoviária, esquinas, quartinhos obscuros, ah, porque isso sim era o dever do onipotente, consumir de uma só vez a babugem demoníaca que escorria do mundo, dever que sobrepujava a benevolência, o desperdício de tempo pra buscar ovelha errante, o avilte em festejar um filho pródigo. "Deus não se deixa escarnecer, minha filha; o juízo está próximo". E debaixo daquele teto, na mesma casinha de fundo alugada,  não se devia oferecer oportunidade pra sussurros do satã. Desde o tempo alcançado pela memória, Marlene tinha que pular da cama ainda madrugada pro culto matinal, resistir a uma hora de orações e leitura de capítulos da bíblia, geralmente concluída com recitação do salmo 91, decorado na marra, tantas palavras difíceis, assim que aprendera a ler. E seguia a rotina de serviços domésticos; primeiro deixar pronta a massa pra mãe enrolar os pães e enfiá-los no forno de barro, cuja lenha Marlene providenciava no favor de limpar quintais vizinhos; não entendia por que encerar seis dias por semana o piso de cimento queimado, sem deixar marca sequer; e então levar os pães de encomenda, antes que esfriassem, aos parcos clientes, sobretudo irmãos da igreja sabedores do sustento das duas vindo disso e da roupa que Eurides lavava pra fora. Na volta, sempre havia ainda muito ofício, roupa pra bater e quarar, feijão pra escolher, o rejunte do piso do banheiro em seu labiríntico mosaico de cacos pra arear, aquele tapete de crochê inacabado, as profecias do livro de Daniel, tão difíceis de entrar na cabeça, e muito joelho dobrado, oração, oração, pra afugentar qualquer atiçamento do inimigo, joelho calejado, coração contrito, nunca o suficiente pra merecer a misericórdia divina...

Não faltava, assim, ocupação a Marlene. Aquela casa não era lugar de indolência. Dona Eurides dizia ouvir, por mérito de tempo e devoção, a voz de Deus e, com a autoridade emanada dos céus, repassava à filha os desígnios do todo-poderoso pra vida dela.

E provações ela teria. A pedra de toque fora providenciada pela própria mãe desde a primeira infância: um baú, que ficava aos pés da cama de Eurides e cuja abertura era proibida. Era a árvore da ciência do bem e do mal. Mesmo sabendo que a chave ficava na primeira gaveta da cômoda, Marlene nunca ousou sequer tocar nela. A mãe sempre soube fazer-se temer.

"Escola, hoje em dia, não é lugar pro povo escolhido, Marlene". Afinal de contas, tudo de que ela precisava pra levar uma vida de fé e retidão, a mãe podia ensinar. A menina então conseguira decodificar as primeiras palavras sob o estímulo duma varinha de bambu, que assobiava na direção das pernas ao confundir, envergonhada de antemão, uma ou outra sílaba. Tão logo pôde converter as letrinhas miúdas dos versículos bíblicos em sons articulados, dona Eurides definiu as quantidades diárias, que a levariam a concluir todos os livros da escritura sagrada em um ano. Sem contar o punhado de salmos que deveriam ser entoados de cor, a qualquer momento, quando a mãe, de súbito, exigisse.

A rua, Marlene a ganhava apenas com finalidade bem clara, no trajeto até a igreja ou por força das obrigações diárias, tão somente o tempo de entregar os pães ou de providenciar a listinha de compras na mercearia. Esse alheamento, a estranheza da mocinha de passo ligeiro, sempre de saia até os tornozelos, cabelos chegando à cintura, instigava na molecada da rua uma necessidade premente de provocar, de segui-la pelo sempre mesmo trajeto, "creeente da bunda queeente", e diante da postura impassível, alguns meninos atentados corriam ao seu redor, esforçando-se em caretas, dedos médios em riste, soltando arrotos seguidos de gargalhadas. Nesses momentos ela pescava em silêncio versículos, "no mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo; eu venci o mundo", palavras que lhe garantissem tratar-se de uma afronta invisível, demônios que usavam aquelas crianças pra estremecer uma serva de Deus, testar a força de sua fé, mas ela inabalável, em silêncio altivo, cingida da armadura do senhor dos exércitos, em batalha contra potestades caídas.

As provações da adolescência foram vencidas. Agora, sobrava apenas o desprezo dos vizinhos, que também tinham crescido, e alguns até mesmo engrossavam alguma igrejinha pentecostal pelas redondezas. Marlene era então a solteirona de respeito, vivendo com a mãe.

Ah, mas há caminhos que parecem direitos, e, ao fim, são trilhas de danação. Que força insondável a teria conduzido, num fim de tarde, voltando da mercearia com anil, fermento e sabão em pedra, desviando-se do percurso habitual pra atravessar em atalho o terreno baldio? Sob um por do sol de laranjas e vermelhos, os timinhos do bairro pelejando na várzea. Ela estacou debaixo da sibipiruna, subitamente cativa à visão do movimento de corpos masculinos na diligência malandra pelo domínio duma bola, divididos entre sem e com camisa, e tantas pernas à mostra, volumes entrevistos sob os calções, as nádegas absurdas e tão rijas dum mulato, troncos banhados em suor refletindo contração de músculos, corridas desembaladas de rompante, "marca o cara aí, porra!", um quadril em ginga de vai-não-vai, gritos imponderados, virilidade gratuita, "volta, volta, caralho", como podia aquele rapazinho esguio correr tanto, tanto, sem descuidar da bola a seus pés?, a bola desenhando uma parábola, saltos em sincronia, ombro a ombro, nos limites do retângulo a cal, um salto se destacava, pescoço e cabeça como chicote, a bola desviada com violência de seu curso, a bola passando pelas traves de bambu, "goooool", os sem camisa agora em abraço despudorado, o cabeceador atracado ao magrelo, rolando lascivos na terra batida, um grandalhão enchia a mão com o orgulho dentre as pernas e, sacudindo raivoso, num berro rouco e grosso, "chupa isso aqui, seus fila da puta". Foi então que a estridência dum casal de quero-queros a tirou do estado de entorpecimento em que caíra, "meu senhor, o que to fazendo aqui?", e abalou-se pra casa, com as pernas titubeantes, as mãos trêmulas a segurar com dificuldade a sacola, ondas de achaque assolando o corpo de cima a baixo.

Marlene não era tão tola a ponto de desconhecer os efeitos daquele emaranhado de sensações. Mas o vocabulário que acessava pra dar sentido àquilo lhe provocava terror: concupiscência da carne, lascívia, devassidão. Chegou em casa e correu ao forno à lenha. Havia ali os restos da última fornada de pão. Logo estava coberta de cinzas e as esfregava nos longos cabelos desgrenhados, e não demorou a encher a boca com um punhado, que lhe provocou um vômito ruidoso, dolorido e necessário.

Sim, a mãe estava certa. Era preciso afastar-se do mundo, da babilônia decaída, gastar o corpo no trabalho árduo, sem reservas, e, a todo momento, vigiar e orar, fechando qualquer fresta aos vapores quentes e furtivos do demônio. Só assim haveria paz. Só assim poderia viver na presença da mãe.

Passados meses, Marlene não duvidava mais: tomara o rumo da santidade. A rotina era chão firme. O isolamento, mesmo em meio aos cultos na igreja, era o único caminho para a iluminação. Evitava as rodinhas animadas na porta do templo, não reparava que muitas crianças um dia embaladas em seu colo agora já formavam casais lépidos, cheios de planos. Estava ali para humilhar-se diante da presença de Deus. Estava ali para reafirmar sua pequenez, sua insignificância de mulher vil e pecadora, rogando misericórdia ao Deus de Abraão, Jacó e Isaque.

Mas quando nada acontece, e o tempo se esvai à larga, é de se esperar o golpe repentino das circunstâncias.

Quem quebrou a rotina foi a própria mãe, Eurides. Ela, o relógio da casa, um dia deu de não levantar antes do sol. Marlene dormia num colchonete na sala, preferia deixar o quarto pra mãe, e naquela manhã estranhou: abriu os olhos e a porta continuava fechada, a casa ainda em silêncio, apenas os rumores de fora, pardais e bem-te-vis, um ônibus ganhando a rua, o chiado de vozes no rádio valvulado do vizinho. Não teve coragem de bater na porta, foi fazer o de costume. Cumpriu as orações e leituras matinais. Ajeitou a mesa, preparou o chá de cidreira, tirou as torradas de sempre do pote, e nada de dona Eurides levantar. Foi até o canto de fora onde ficava a janela, pisou as plantas do canteirinho, encostou orelha na veneziana, tudo em silêncio. Voltou à porta, olhou pelo buraco da fechadura, a luz apagada. Decidiu ajeitar a lenha no forno e já tocar fogo pra adiantar o trabalho. 7 horas, e a mãe no quarto. Tinha que entrar. Mas não ousava. Estacou novamente na porta e, passado o tempo suficiente pra sentir as gotas de suor pingando das mãos, admitiu três batidas leves. Sem resposta. Quando, num ímpeto, juntou coragem e apanhou a maçaneta, ouviu o grito de voz áspera e familiar, "Marleeeene".

Na penumbra, Marlene procurou o interruptor pera e clicou. Não se lembrava de ter visto a mãe de cabelos soltos e com roupa de dormir, uma camisola cuja cor original ninguém saberia dizer. Eurides estava sentada no meio da cama, de ombros curvados, braços estendidos sobre as pernas. Ao fitar os olhos da mãe, Marlene encontrou-os desorbitados, estrábicos, bem diferentes dos olhinhos sempre incisivos e inquiridores. Um odor ácido e profundo tomava o ambiente. A roda mais escura no lençol, ao redor da mãe, denunciava urina matinal empapando a cama. Sem tempo de refletir sobre os estímulos sombrios que os sentidos lhe traziam, Marlene ouviu uma ordem, "Me traz um ovo cozido. Já!".

E Eurides não deixou mais o quarto, nem mesmo a cama. Às oito da manhã, ao meio-dia e às seis da tarde, do quarto a mãe gritava ovos cozidos e um copo d'água. Mais tarde, por volta das nove da noite, ela exigia leite adoçado com açúcar queimado, e só. Não adiantava trazer outro prato separado com a comida. E apenas as gemas dos ovos ela comia.

Ainda no primeiro dia, Marlene teve coragem de perguntar, "Mãe, a senhora tá se sentindo bem?", "Cala essa tua boca maldita, sua filha de Jezabel! Tu não vai corromper este lugar santo!". Aturdida pelos gritos, Marlene correu da presença materna e tapou os ouvidos pra não ouvir o restante das imprecações.

Tacitamente, outra rotina foi estabelecida. A filha entrava, absorta como num serviço litúrgico, pra trazer as refeições e esvaziar as excretas da comadre, colocada ao lado da cama. Não se podia abrir janela nem trocar roupa de cama. Os gritos de ameaça da mãe irrompiam duma insensatez que também impõe respeito. Eurides não visitou mais o banheiro ou sequer trocou a camisola rota. A fetidez pronto tomou conta do lugar. Durante o dia longos monólogos ponteados por gritos se dissipavam do quarto pela casa. Na madrugada, Marlene, encolhida no colchonete, passou a ouvir a mãe entoar melodias desconhecidas:

Tinha rendas de Sevilha
A pequena maravilha
Que o teu corpinho abrigava
E eu, eu era o dono de tudo,
Do divino conteúdo
Que a camisola ocultava.

Era certo que logo gente bisbilhoteira viria pra sujar o sossego obtido, ao longo dos anos, com o desinteresse alheio. Já fazia mais de duas semanas o princípio da condição especial de dona Eurides. Primeira vez em anos que faltavam aos cultos. Algum irmão de fé mais antigo, mais por costume que por real interesse, proporia uma visita pra tomar motivos da ausência. Os vizinhos, também, mesmo que indiferentes às duas, teriam a curiosidade atiçada — o sumiço da crente rabugenta, algum pedaço de grito que sobrepujasse a melopeia intermitente de tevês e rádios.

Marlene manteve a entrega dos pães e, taciturna, demonstrando não querer conversa, dizia aos clientes que a mãe estava de repouso pra curar gripe forte. Dona Eurides não gritava mais. Agora resmungava, numa cantilena renitente, pontuada de gemidos graves, que lhe saíam da boca como o ranger duma porta emperrada há muito. Durante a noite, em vozinha afinada, aguda, mas discreta como nunca dantes a filha ouvira, Eurides entoava as canções desconhecidas. Marlene, atraída por uma recordação que não era sua, mas que lhe embalava como um mimo familiar, passou a ouvir atenta, noite após noite, aproximando o colchonete da porta do quarto.

Boneca de trapo, pedaço da vida
Que vive perdida no mundo a rolar
Farrapo de gente que inconsciente
Peca só por prazer, vive para pecar

E foi no meio dessa canção que, numa madrugada absurda de clara, Marlene pegou a tesoura da caixa de costura e, sem olhar espelho, podou sem melindre os longos cabelos, até deixar a nuca à mostra. Em passos leves, ela entrou no quarto, resgatou o baú, enquanto a mãe, um espectro estendido na cama, repetia a canção, como se sua existência se resumisse a uma voz a emitir em letra e melodia uma mensagem que só cabia a Marlene decifrar. Com a chave em mãos, ela ajoelhou-se diante do baú. Ali tão somente uma camisola de renda. Não. Era a camisola guardada para ela, Marlene. Não era uma camisola. Um vestido pra noite. Como já tinha visto em mocinhas lépidas do bairro, nas noites de sexta e sábado, vestidas em tecidos leves que convidam a adivinhar a textura da pele, que profetizam o desejo de despir pra consumar de vez o corpo. Marlene despiu-se pra colocar o vestido. Sentiu-se cobiçada por olhos atrás das paredes. Eurides continuava outra estrofe:

Boneca noturna que gosta da lua
Que é fã das estrelas e adora o luar
Que sai pela noite e amanhece na rua
E há muito não sabe o que é luz solar

Marlene deixou o quarto e fechou a porta. Ao fundo, um fiapo de melodia abafada, ouvida pela última vez enquanto vivesse. Com os trocados que juntou desde aquela manhã inusitada, compraria uma passagem para a capital ou, se não desse, para a cidade mais próxima dela que a grana permitisse. Quem sabe se, nos arredores da rodoviária, não levantava mais uns bons trocados? Quem sabe se, na grande cidade, num inferninho qualquer, não encontrava o cantor boêmio que assoprara as canções da noite nos ouvidos da mãe?

quarta-feira, 1 de março de 2017

OS NEM TÃO NOVOS DISCURSOS DA GERAÇÃO PÓS-YUPPIE

Em "O lobo de Wall Street" (2013), Martin Scorcese traduziu a essência das quase mil páginas autobiográficas de Jordan Belfort, o rapaz que "saiu do nada" e chegou ao 1,5 bilhão de dólares e ao controle de 30 empresas em poucos anos. O investidor Belfort explorou os limites de sua inteligência e utilizou toda sorte de estratégias para tornar sua empresa, a Stratton Oakmont, um prodígio do mercado financeiro. Para tanto, ele reúne fiéis colaboradores eficazmente motivados com cocaína da boa e festinhas com prostitutas de luxo dentro do escritório, onde passam horas a fio. O pó ou os comprimidos de quaalude (droga favorita de Belfort) mantêm o foco no trabalho e os dividendos (além das prostitutas) garantem o gozo da rapaziada engravatada e das (poucas) garotas de tailleur que são admitidas no jogo do sucesso segundo o manual degradado dos novos ricos. Fica evidente que o jogo de compra-venda é pautado na imaterialidade das cifras, apenas quimeras; assim, para dar concretude à fortuna, o grupo vulgarmente se lambuza na opulência, festas em aviões e iates, embaladas por drogas e bebidas caras, afinal de contas, o dinheiro é deles e podem fazer o que quiserem com ele. Contudo, neste caso o castelo de cartas cai, o FBI vai no encalço e revela as falcatruas da empresa (ação narrada no segundo livro, "Caçada ao lobo de Wall Street"). Embora ele seja preso por abusar na ousadia de especulador, não há dúvida de que o perfil de Belfort está bem afinado com a lógica da bolsa. Ele é o cara ideal pra realidade do capitalismo financeiro.

Mas o que pretendo destacar aqui é o perfil de Belfort após sair da prisão, que aparece numa cena no finzinho do filme. Fora do mercado financeiro, ele faz uma leitura da nova realidade e, com seu espírito empreendedor, consegue nadar na grana novamente. O lobo de Wall Street retorna como uma espécie de guru, vestido em roupas mais casuais, pele bronzeada denotando corpo saudável, corpo e espírito prontos para uma palestra motivacional. Com incontestável habilidade linguística (que os não ingênuos sabem se tratar, na verdade, de retórica travestida de conhecimentos cientificamente balizados), Belfort demonstra à plateia hipnotizada como vender uma simples caneta para qualquer pessoa, mesmo que a pessoa esteja convicta de que não quer nem precisa da caneta.

Saindo agora do contexto de livro e filme, Jordan tornou-se de fato um palestrante bem sucedido, inclusive veio ao Brasil em 2015 (os ingressos custaram 3 mil reais e se esgotaram rapidinho). Segundo matérias da imprensa, ele consegue manter o público hipnotizado nas mais de 3 horas de palestra. Resumindo, ele diz que pra ganhar dinheiro são necessários três passos: autoconfiança - justificativa/motivo - ação (muita ação). Está claro, pra mim, que Jordan representa também essa galera da geração pós-yuppie. O pessoal que trabalha 12 a 16 horas tirando energia das porções controladas de "alimentos funcionais" e bebidas pra "alcalinizar" o corpo. Defendem que esse tal almoço brasileiro de arroz com feijão não é apropriado e rouba de 1h30 a 2h de produtividade, isto é, o melhor é fazer um intervalinho de 30 a 45min com nutrientes leves e boa hidratação pra voltar prontamente à atividade. Essa galera se apropria superficialmente de filosofias orientais pra "afastar a negatividade" e manter a mente saudável. Costumam dizer que se alguém está em dificuldade ou meio desanimado no trabalho é porque não se programou nem agiu com afinco pra abrir outras portas. Essa turma faz regularmente faxina na consciência participando de projetos sociais, "doando seu tempo" à caridade, ou desenvolvendo projetos de "responsabilidade socioambiental". Defendem que o Estado deve atuar exclusivamente oferecendo segurança ao cidadão e à propriedade, colocando no devido lugar quem não quer trabalhar e produzir. Através de seus óculos de ética distorcida, veem desigualdades socioeconômicas brutais como resultado natural do mérito. Esse pessoal diz que está preocupado em oferecer ferramentas pra qualidade de vida dos trabalhadores, mas, no final das contas, "it´s all about business".

O perfil de Jordan Belfort, hoje mais um representante da geração pós-yuppie, foi apenas pretexto para afirmar: os lobos renovam sempre suas peles de cordeiro.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

TIO VALDIM


         para Adriel Luis Gennaro
e para Paulo Sérgio da Cruz (in memoriam)





         — Quantos palitos de fósforo preciso juntar pro barco, tio Valdo?
         — Tem que contar por caixinha, moleque. Meio milheiro pra caravela. Se você juntar, prometo que faço uma bem da hora, no capricho.
         Não houve caravela. Durante anos nunca juntei os fósforos suficientes. E agora ia ao encontro de quem não podia mais cumprir a promessa. Segunda-feira, meados de novembro de 1998, meu irmão Mateus me ligou no meio da manhã. Acharam um corpo. Provavelmente do tio Valdo, falta confirmar. Meia hora depois, outra ligação, sim, o corpo do tio no pedaço de espuma que fazia de colchão no quartinho alugado. Duas horas de estrada e um turbilhão de lembranças me levariam de volta a Sertãozinho.
         Não tinha como não gostar do tio Valdo. Falava mole, um risinho no fim da frase. Cara de deboche ingênuo. Embora eu não soubesse explicar, percebia nele o gesto solto, de quem não se molda a expectativas. Uma liberdade incômoda pros adultos da família. Desde que me lembro, ignorou a vida séria que meu pai e meus tios rumaram. Todos eles, pobres remediados. E ao caçula coube a vida torta. Pícaro e bufão. Quando lhe falavam de tomar tento, agarrar trabalho de gente honesta, ele desatava gargalhada, revelando o oco liso dos molares.
         Uma foto carcomida era a única lembrança material que tinha do período em que ele cumpriu pena em Araraquara. Tio Valdo era nego-aço — mulato de cabelo sarará aloirado. O risinho esboçado no canto da boca eternizou-se na imagem maltratada por tempo e suor de minhas mãos. Ao fundo, os muros de concreto armado da prisão compunham com o céu cinzento e o uniforme azul esmaecido um clima melancólico, não fosse o sorriso e a estampa dum pêssego enorme no meu moletom.   
         Nunca soube exatamente o motivo da primeira cana. Quando falava do irmão desmiolado, minha mãe era toda censura terna. Tio Valdo sempre tinha dado mais trabalho que os outros. Só cabulava aulas. Tomava gosto por vadiagem. Aos doze anos, por aí, numa briga com moleques na beira do córrego Duas Pedras, acabou levando uma botinada na moleira que o deixou desacordado. Já no hospital, Valdim apenas voltou a si quando colocaram um chumaço de éter pra ele fungar. Da ambulância ao camburão, foi uma questão de poucos anos.


         Cumprida a pena, voltou pra Sertãozinho, e foi morar num quartinho na casa de meus bisavós. Primeira vez que vi imagem de mulher com as pernas arreganhadas foi na porta do quarto dele. Ali organizou um mosaico de pernas, bundas, peitos e bocas convidativas. Ao me flagrar um dia vidrado numa ruiva voluptuosa, ele perguntou se eu já tinha chupado um grelo. 
         — Quê que isso, tio?
         — Sabe não, pirralho? Dropes novo. De vários sabores. Um dia trago um pra você experimentar. Agora vai dar uma volta que o tio aqui vai esticar a carcaça.

          Fim de semana os primos se reuniam pra aproveitar o quintal ponteado de pés de fruta — manga, goiaba, jabuticaba, ameixa, limão, cajá-manga, ciriguela, sem falar da figueira-de-jardim, árvore de fruto proibido. A bisa impunha distância dos figos. Do quarto onde labutava as doenças da senilidade, ouvíamos os gritos do além, imprecando maldição a quem se aproximasse dos frutos insossos. Quão gostoso o sabor da ameaça. Não pelo gosto do figo, mas, hoje desconfio, pelo gosto do pecado original revisitado. Açodávamos, então, uma rebeldia ingênua, enredada por ameaças impraticáveis, mas instigantes ao rompimento do temor mítico que fertiliza a infância.      
         Tio Valdo estava sempre de passagem. Pra jogar uma água no corpo ou trocar o gás do isqueiro ou esvaziar a mochila no quarto. Mas sua presença não passava batida. Chegava fazendo arruaça, inventando apelido novo pra quem ele visse primeiro, depois dava um abraço de tamanduá na minha avó, que sofria de mal de chagas:
         — Amós...Jonas...Samuel...Valdo, tem pena da tua mãe! — confundia o nome dos filhos e o acerto vinha quando só o dele restava —  Meu coração não guenta.
         Diante daquela presença intrigante, como eu era o mais velho entre a meia dúzia de primos, me tocava puxar a potoca sobre o tio vida-torta. A primogenitura me dava mais autoridade na tentativa de explicar a rotina arrevesada do tio Valdim. Daí o estímulo pra forjar histórias, com as quais me envolvia a ponto de acreditar mesmo, trêmulo de excitação.
         — Sabia que o tio toma sopa temperada com maconha?
         Ficava imaginando a sopa preparada todas as noites por minha avó. Sempre o punhadinho de macarrão padre-nosso e algum legume boiando no caldo engrossado com extrato de tomate. Então os olhos matreiros do tio Valdo. E dedos serelepes salpicavam a ervinha do capeta por cima. Que gosto teria aquilo? Na sopa, por quê? De certo, tinha a ver com a canção de mosca e sopa, que ele cantava às vezes no meio do terreirão pra marcar o ritmo no gingado de capoeira. Jogava sozinho. E não queria ensinar pra gente.
         — Professor de rabo de arraia é a rua. Cês é tudo meninão de casa e igreja.

         Tio Valdim fez vida errada. Não é exemplo pra ninguém, relembrava o biso Dito ao perceber o clima de admiração. O que, de fato, ele fazia nenhum adulto nos contava, se é que sabiam. Então fabulávamos mais. Em roda, os moleques que nem tevê tinham em casa enredavam o herói Valdim em inverossímeis aventuras. Ele se correspondia com um tal de João Acácio, preso lá no Paraná, e, por conselho do mentor, tinha queimado fundo todas as pontas dos dedos. Pra aguentar a dor, tinha virado no gluglu um litro da branquinha Pignata. Agora, homem sem digitais. E na mochila não podia faltar uma lanterna de facho vermelho. Também conselho do correspondente. Essa história foi se costurando quando tio Valdim apareceu com as duas mãos enfaixadas, cambaleante, resmungando palavras de boca suja antes de se trancar no quarto.

         Numa quinta-feira à noite, já passava das dez, atendi uma ligação do tio Jonas; nem me cumprimentou e pediu pra falar com meu pai, 'quê? roubou um Verona no Alto do Ginásio?...ladrãozinho safado...bateu? não andou nem três quarteirões?...além de bandido, é burro...tá bom, to indo pra lá'.
         A partir dessa noite tio Valdo ganhou residência nova, a cadeia pública de Sertãozinho, que ficava apenas a alguns quarteirões da casa dos bisos. Fui uns pares de vezes visitá-lo com minha avó. Ali só ficavam os bandidos pé-de-chinelo   ladrões de galinha, bêbados encrenqueiros e outros quaisquer que ameaçassem, de leve, a ordem pública. Os casos mais complicados, homicídio, latrocínio, estupro, tráfico de remonta, iam pra presídios de maior respeito, na região.
         A cada visita, tio Valdo apresentava a galera toda. Me lembro do Graxa, tio do Cosme e Damião, moleques vizinhos de casa. Ele fazia tapetes e barcos de palito. Ensinou tudo o que sabia do ofício a meu tio. Graxa perguntava dos sobrinhos, pedia pra vigiar se não andavam com má companhia. Numa outra visita me deu um jogo de botão improvisado. Os jogadores eram pregos pintados de azul e vermelho, e a bola, uma biloca de gude. Um toque cada jogador. Até hoje me pergunto como eles arrumavam pregos e martelo na cadeia. O punhadinho de presos me fez sentir orgulho de ser sobrinho do "Marrom", goleiro dos bons nas peladas durante os banhos de sol.  Cheguei a acreditar, no exíguo tempo passado ali, que dava pra ser feliz na cadeia. Jogar bola e construir brinquedos sem a obrigação do trabalho. Um outro jardim da infância, talvez. Mas percebia que o sorriso de tio Valdo principiava a despetalar.
         Nesse período, se bem me lembro, a morte levou meus bisos. Sozinha no casarão, a vó arrastava amargura, o ar lhe faltava, e apegava-se às vozes dos locutores dos canais AM, especialmente um Leo Oliveira, que vertia em melodrama supostas cartas de ouvintes. Às vezes, nos fins de semana, Valdim aparecia no quintal. Tranquilo, calado e mais magro. Deixavam que saísse da cadeia. Ficava por lá um pouco, comia, pegava umas frutas, goiaba, acerola, ameixinha, pinha, e voltava.
         Ao concluir dois anos de pena, ele foi ajudar tio Jonas na oficina de funilaria e pintura, onde eu também estava trabalhando meio período. Com meus quinze anos, já passava da hora de trocar o ócio das tardes por uma atividade de moço responsável. Então tio Valdo virou meu companheiro; éramos os únicos moleques do barracão, embora ele já estivesse no meio dos trinta. Não carecia mais inventar histórias. Agora eu podia ser ouvinte exclusivo de fabulação.

         Era desastrado. Tio Valdo era um comédia. Certa feita, enquanto lixávamos um Monza, me contou que, pra comemorar o ano de maior, tinha arranjado um .32 velho e ido lá pros lados de Orlândia, curtir umas grutas famosas naquelas bandas. Cara e tipo manjados, dedo-duro na área, a polícia deu em cima. Escondido numa gruta, armou emboscada e enquadrou os canas, mas enrolou-se todo com a arma. Rodou por lá mesmo, depois transferido pra Ribeirão, finalmente pena em Araraquara. 
         Se o ferro não tivesse enrolado na minha camisa, eu tinha escapado.       
      — Mas ia matar, tio?
      Não, tá doido! — soltando a gargalhada banguela — Só ia dar um susto e zarpar.
         Confessou que sonhava um assalto grande pra arrumar a vida. Só o suficiente pra ir embora, sossegado. Comprar uma casinha caiçara. Dormir e acordar no barulho das ondas. Viver solto feito peixe em água sem fim. Surfista é que era homem livre e feliz. Fiquei apavorado. Se ele fizesse mesmo, seria eu cúmplice? Egoísta, torci pra ele continuar desastrado.
         E tio Valdo continuou na oficina. De vez em quando fazíamos umas traquinagens. Até tio Jonas entrava na onda. Inventaram de andar de bicicleta sentado de costas no guidão. Ficaram os dois uma tarde toda se exibindo. Outra vez, em friagem de junho, inventamos fazer fogueira. Tascar fogo nos jornais usados pra empapelar os carros na pintura e um monte de lixo da oficina. 
         — Aí, Dri, quer ver um negócio maluco? Joga thinner! Vai ver o fogaréu que faz.
         Mandei a lata inteira. Tremi de pavor com a explosão. Tio Jonas me rasgou verbo de bronca, e ele ficou rindo de canto, dizendo pra ser mais ligeiro na malandragem.
         Porém, com frequência crescente, tio Valdo firmava num silêncio que lhe negava a natureza. Lixava um carro inteiro sem falar uma palavra. E mais magro. Uma tossinha que persistia. Devia ser o pó da massa automotiva, o cheiro de thinner e tinta. Estava se alimentando? A vó sempre fazia o simples apetitoso. E dormindo direito? "Depois de cana, moleque, sujeito não dorme, não dorme não, até fechar os olhos de vez. Ainda mais quem virou garoto em cadeia".
         Então vieram as dores, mais fortes, os exames, a sentença: a maldita. Ex-presidiário e aidético. Parte da família cochichava castigo divino. Agora podiam rechear a maledicência com causa e efeito. Minha mãe e meus tios procuravam tratamento. Era uma tal zidovudina, vulgo AZT, e já havia projeto de lei pra distribuição de graça na rede pública. Prolongava a vida, mas exigia rotina regrada. Tio Valdim filtrava o converseiro com sarcasmo. E o Cazuza, que era um baita playboy, não tinha secado até morrer? Fazendo renascer a risada redonda, dizia até gostar da ideia de morrer logo.
         E quem não resistiu foi o coração de minha avó ao chagas. Valdo ficou sozinho no casarão que tinha abrigado três gerações. Logo demoliram tudo. Cada tijolo vendido. O quintal sobrou imenso, uma floresta de fantasmas. Um tio-avô tomou a frente das intenções de vender o terreno. Tio Valdim resistiu. Montou uma barraca, arrumou um fogareiro, e continuou por lá até que o afoito parente avulso jogasse a tralha no córrego ao fundo. Ele não podia ficar ali. Era um empecilho à herança. Resignou-se, por fim, a ir pro quartinho alugado pelos irmãos no alto do Alvorada. Pra ele, apenas um ponto de parada entre as idas e vindas ao engenho pra encher uma pet de cachaça. Tratamento não ortodoxo. Ouvi um médico falando à minha mãe que eram essas caminhadas que o mantinham vivo.
         Sem aviso aparecia em casa. Barba crescida, um fiapo de corpo. Os vizinhos estranhavam o mendigo a quem abríamos as portas. Tio Valdo queria só dormir um pouco. Eu arrumava minha cama pra ele, com carinho, e puxava ao lado um colchonete pra mim, donde velava a horinha rala de sono. Queria que ele descansasse mais. Dormisse dias seguidos. Que ficasse ali com a gente, abrigado da noite tamanha. Mas a inquietude não o abandonava, a fissura de seguir pra parte alguma, e tio Valdo partia, deixando no mormaço opaco o eco duma gargalhada.
Mudei-me de Sertãozinho pra estudar e trabalhar em cidade maior. Mergulhei no marasmo de papéis de praxe, fluxo de caixa e balancetes, vivendo austero do salário que mal pagava a faculdade e as contas básicas. Os dias de rotina sobreposta tendiam a transformar a figura de tio Valdo, antes tão definitiva como forma de sentir a dor do mundo, apenas num pálido enredo de infância e adolescência. A morte dele me trazia à consciência o sepultamento da fase em que a rejeição aos padrões não é rebeldia, mas uma busca ingênua de liberdade, uma liberdade perigosa, centelha que, a olhos domesticados, deve ser apagada, com sopros de sofrimento e vergonha, sob o risco de alimentar uma fogueira a derreter as fôrmas lineares que moldam a vil segurança da tal vida direita e honesta.
         Inundei o fusca de choro e ódio durante a viagem. Como eu podia ser tão covarde e abandonar tio Valdo? Como podia aceitar uma vida medíocre trancado num escritório? Fui pro velório municipal disposto a escancarar hipocrisias. Ah, se encontrasse ali algum dos malditos parentes que detratavam Valdim, o bandido, a ovelha desgarrada, o peco fruto da família... estava disposto a cuspir em caras, quebrar dentes, gritar sujidades no desvão duma coroa de flores.

         Todo meu ímpeto se esvaiu diante do caixão, o barquinho singelo, navegando entre as espumas de margaridas brancas. Barba feita, revelando um outro sorriso, um risinho sereno, como enseada que mantém o mar liso em sua semicircunferência. Aquele sorriso me dizia, com o siso terno da morte, 'Adriano, agora você pode juntar os palitos e fazer o barco sozinho'.