Girl in a white dress, Lucien Freud, 1947
Naquela
manhã de sábado, fora de seu costume, ela sugeriu timidamente um hino durante o
louvor — a meia hora de cânticos que mantinha os membros ocupados até o início da
sequência litúrgica do culto. O moço que conduzia a música esticou o pescoço,
apontando o ouvido, não tinha escutado, a irmã repetisse, por favor, um pouco
mais alto. Ela resvalou ligeira e alternadamente as mãos suadas na saia — onde
estava o lencinho? —, as mãos úmidas, frias, a ponto de pingar durante o
martírio dum trivial cumprimento, quanto mais na insensatez de abrir a boca em
público. Puxou então ar, no afã de a voz
lhe sair mais segura, e repetiu "483, Rude
Cruz". Num sorriso pronto, recurso de jovem líder, a fim de disfarçar
a má vontade com tal canção de ritmo lento, arrastado, o rapaz alisou a gravata
puída e soltou "ótima escolha", e ligeiro encontrou a página entre o
maço apoiado na estante retrátil. O ruflar das folhas misturou-se ao das asas
assustadiças de pombos lá fora. Mas os irmãos tinham que transigir com a
lentidão da organista, que molhava o indicador na pontinha da língua e apertava
os olhos gastos, caçando a partitura. Não tinha mais ninguém que tocasse
instrumento, então era preciso ainda acompanhar os acordes malfeitos, a falta
de compasso, as notas intermináveis ao som nasalado e sombrio do órgão elétrico,
de algum modo conferir uma réstia de harmonia àquele punhado de vozes que tentavam
acompanhar a música canhestra. Irrompia o agudo de algumas senhoras, em ondas
de taquara, vozes esganiçadas, contrastando com o murmúrio dos homens, em grave
tom abaixo, quando não completamente fora do tom. E Marlene se unia ao lamúrio,
a letra de cor, "levarei eu também minha cruz/Té por uma coroa
trocar", com o olhar fixo no teto manchado de infiltrações, talvez
procurando nos borrões negros, esverdeados, um sinal, a almejada mensagem dos
céus de que enfim chegava o momento.
A igrejinha fora erguida em meados
da década de 1950, e quase nenhuma mudança desde então. Algumas demãos de
tinta, um reparo nos bancos, uns pares de telhas trocadas, o mínimo. No bairro,
era apenas mais uma igreja de crente, em meio aos vários salões alugados nos
últimos anos pras dezenas de denominações. Não angariavam novos conversos como as
outras; faltava o êxtase pentecostal, o frenesi coletivo, a catarse das línguas
estranhas e previsíveis, as músicas com clímax subindo de oitava no refrão, repetido
como mantra, até o corpo entrar em transe, aquilo que nomeavam a descida do
fogo do espírito santo. Não, não, os cultos ali eram moldados em rito discreto,
fleuma, améns cadenciados durante as orações, algo de real decoro e do agrado
do altíssimo, como se repetia com orgulho solene. Poucos membros, todos pobres,
um ou outro remediado, receita exígua com dízimos e ofertas. Mas ali estava o povo escolhido de Deus;
qualquer dificuldade, inclusive a de manter aquele lugar sagrado, não era prova
dessa seleção?
Frequentavam a igreja três gerações
de fiéis, a maioria com algum grau de parentesco, e geralmente a ascendência
determinava a hierarquia de cargos, distribuídos nos chamados ministérios, cada
qual com seu respectivo status e autoridade pra repreender qualquer outro irmãozinho
que fraquejasse na fé ou se desviasse da conduta rumo à santidade. Ostentava-se
nas pregações e pesados estudos bíblicos um orgulho de, num mundo prestes a ter
fim, guardarem a verdade, a única a que qualquer indivíduo, não importando
raça, nacionalidade, condição econômica, deveria se submeter se quisesse
salvar-se da perdição eterna. E ai daqueles não convertidos até o fechamento da
porta da graça.
Marlene era uma fiel de berço. A
mãe, dona Eurides, exemplo de fervor e rigidez, imprimira na filha única o
temor de Deus, antes mesmo que a menininha compreendesse quem ela era. Eram
apenas as duas. Não conhecera o pai, e quase nunca a mãe falava sobre ele;
quando surgia, por descuido, o nome dele numa conversa, emendava umas frases
feitas, "seu finado pai cavou a própria cova, minha filha; não aceitou a
mensagem, perdido pra sempre". Ouvia de terceiros, em fiapos de histórias
que buscava alinhavar: Romero fora jovem com pose e ares de artista, cantava sob
lona de circo, em botecos, figura de animar a noite, sorriso de fazer as meninas
cochicharem, alvoroçadas, entre risinhos, reivindicando a exclusividade dos
olhos azuis semicerrados. E, entre pares de oferecidas, Eurides como escolha
pra morar no aluguel duma casinha de fundos. Onde a mãe o teria conhecido? Como
despertara a atenção do rapaz trigueiro? Que artimanhas, segredos de mulher,
ela tivera na juventude? Impossível. Não conseguia pensar na mãe como figura
sedutora, que exalasse qualquer convite à carne. Pra ela, sempre a imagem
sisuda, os lábios finos irremediavelmente rachados, as poucas roupas de tons
sóbrios, terrosos, cobrindo todo o corpo; os cabelos, que já lhe deviam chegar
quase aos pés, sempre no coque, envolto numa redinha. Mas era fato que, ao lado
de Eurides, num ano qualquer, há quase três décadas, Romero parecia ter tomado
rumo de homem responsável; deixara pra lá a bobagem de artista, alugara uma
portinha comercial onde tocava uma tinturaria, lavando e engomando camisas e
ternos de gente importante da cidade. Trabalho de gente honesta, e sem depender
de patrão. Porém, o espírito aventureiro, a frustração silenciosa e crescente,
mais a bebida, esta sobretudo, o conduziram errante numa noite pela estrada,
sem dizer adeus, sem dizer palavra, apenas com a roupa do corpo e o dinheiro
das contas que estavam pra vencer. Abandonou Eurides — sabia da gravidez? —,
caiu no mundo provavelmente como trovador andarilho, cantando em troca de pouso
e copo cheio, até o excesso e a estrada minguarem a voz e, segundo o desfecho da
fábula, enterrado na capital.
Não houve outro homem na casa. Quase
trinta anos desde a partida daquele que, pra Marlene, não passava duma sombra
errática, uma sombra a pairar sobre o conhecimento possível a respeito da mãe,
a cristã fervorosa, inclemente, criatura à imagem do deus belicoso do velho testamento.
A nova Eurides despontara quando, durante a gravidez, recebeu a visita duma
dupla de rapazes de fora que, ao fim de apresentação convincente, ofereceram um
livro com promessas de saúde a partir de plantas. Não venderam o livro, mas a
presentearam com um outro que narrava em pormenores o fim do mundo, e retornaram
diversas vezes até encerrarem um estudo bíblico completo, arrematado com um
apelo de conversão. O momento era propício. Uma luta invisível entre o bem e o
mal conferia sentido ao sofrimento e à dor do abandono. Eurides veio a batismo
e passou a frequentar a igrejinha recém-inaugurada no bairro. Já experiente na
fé, membro atuante na comunidade cristã, ela passou a se interessar muito mais pelo
poder divino de consumir a fogo todos os ímpios, pândegos, messalinas, sodomitas,
escarnecedores, adoradores de Baal, aqueles gentios despudorados pululando
ruas, bares, banheiros de rodoviária, esquinas, quartinhos obscuros, ah, porque
isso sim era o dever do onipotente, consumir de uma só vez a babugem demoníaca
que escorria do mundo, dever que sobrepujava a benevolência, o desperdício de
tempo pra buscar ovelha errante, o avilte em festejar um filho pródigo. "Deus
não se deixa escarnecer, minha filha; o juízo está próximo". E debaixo
daquele teto, na mesma casinha de fundo alugada, não se devia oferecer oportunidade pra
sussurros do satã. Desde o tempo alcançado pela memória, Marlene tinha que
pular da cama ainda madrugada pro culto matinal, resistir a uma hora de orações
e leitura de capítulos da bíblia, geralmente concluída com recitação do salmo
91, decorado na marra, tantas palavras difíceis, assim que aprendera a ler. E
seguia a rotina de serviços domésticos; primeiro deixar pronta a massa pra mãe enrolar
os pães e enfiá-los no forno de barro, cuja lenha Marlene providenciava no
favor de limpar quintais vizinhos; não entendia por que encerar seis dias por
semana o piso de cimento queimado, sem deixar marca sequer; e então levar os
pães de encomenda, antes que esfriassem, aos parcos clientes, sobretudo irmãos
da igreja sabedores do sustento das duas vindo disso e da roupa que Eurides
lavava pra fora. Na volta, sempre havia ainda muito ofício, roupa pra bater e
quarar, feijão pra escolher, o rejunte do piso do banheiro em seu labiríntico
mosaico de cacos pra arear, aquele tapete de crochê inacabado, as profecias do
livro de Daniel, tão difíceis de entrar na cabeça, e muito joelho dobrado,
oração, oração, pra afugentar qualquer atiçamento do inimigo, joelho calejado,
coração contrito, nunca o suficiente pra merecer a misericórdia divina...
Não faltava, assim, ocupação a
Marlene. Aquela casa não era lugar de indolência. Dona Eurides dizia ouvir, por
mérito de tempo e devoção, a voz de Deus e, com a autoridade emanada dos céus,
repassava à filha os desígnios do todo-poderoso pra vida dela.
E provações ela teria. A pedra de
toque fora providenciada pela própria mãe desde a primeira infância: um baú,
que ficava aos pés da cama de Eurides e cuja abertura era proibida. Era a
árvore da ciência do bem e do mal. Mesmo sabendo que a chave ficava na primeira
gaveta da cômoda, Marlene nunca ousou sequer tocar nela. A mãe sempre soube
fazer-se temer.
"Escola, hoje em dia, não é lugar
pro povo escolhido, Marlene". Afinal de contas, tudo de que ela precisava
pra levar uma vida de fé e retidão, a mãe podia ensinar. A menina então conseguira
decodificar as primeiras palavras sob o estímulo duma varinha de bambu, que
assobiava na direção das pernas ao confundir, envergonhada de antemão, uma ou
outra sílaba. Tão logo pôde converter as letrinhas miúdas dos versículos
bíblicos em sons articulados, dona Eurides definiu as quantidades diárias, que
a levariam a concluir todos os livros da escritura sagrada em um ano. Sem
contar o punhado de salmos que deveriam ser entoados de cor, a qualquer
momento, quando a mãe, de súbito, exigisse.
A rua, Marlene a ganhava apenas com
finalidade bem clara, no trajeto até a igreja ou por força das obrigações
diárias, tão somente o tempo de entregar os pães ou de providenciar a listinha
de compras na mercearia. Esse alheamento, a estranheza da mocinha de passo
ligeiro, sempre de saia até os tornozelos, cabelos chegando à cintura,
instigava na molecada da rua uma necessidade premente de provocar, de segui-la
pelo sempre mesmo trajeto, "creeente da bunda queeente", e diante da
postura impassível, alguns meninos atentados corriam ao seu redor,
esforçando-se em caretas, dedos médios em riste, soltando arrotos seguidos de
gargalhadas. Nesses momentos ela pescava em silêncio versículos, "no mundo
tereis aflições, mas tende bom ânimo; eu venci o mundo", palavras que lhe
garantissem tratar-se de uma afronta invisível, demônios que usavam aquelas
crianças pra estremecer uma serva de Deus, testar a força de sua fé, mas ela
inabalável, em silêncio altivo, cingida da armadura do senhor dos exércitos, em
batalha contra potestades caídas.
As provações da adolescência foram
vencidas. Agora, sobrava apenas o desprezo dos vizinhos, que também tinham
crescido, e alguns até mesmo engrossavam alguma igrejinha pentecostal pelas
redondezas. Marlene era então a solteirona de respeito, vivendo com a mãe.
Ah, mas há caminhos que parecem
direitos, e, ao fim, são trilhas de danação. Que força insondável a teria
conduzido, num fim de tarde, voltando da mercearia com anil, fermento e sabão
em pedra, desviando-se do percurso habitual pra atravessar em atalho o terreno
baldio? Sob um por do sol de laranjas e vermelhos, os timinhos do bairro
pelejando na várzea. Ela estacou debaixo da sibipiruna, subitamente cativa à
visão do movimento de corpos masculinos na diligência malandra pelo domínio duma
bola, divididos entre sem e com camisa, e tantas pernas à mostra, volumes
entrevistos sob os calções, as nádegas absurdas e tão rijas dum mulato, troncos
banhados em suor refletindo contração de músculos, corridas desembaladas de
rompante, "marca o cara aí, porra!", um quadril em ginga de
vai-não-vai, gritos imponderados, virilidade gratuita, "volta, volta,
caralho", como podia aquele rapazinho esguio correr tanto, tanto, sem
descuidar da bola a seus pés?, a bola desenhando uma parábola, saltos em
sincronia, ombro a ombro, nos limites do retângulo a cal, um salto se destacava,
pescoço e cabeça como chicote, a bola desviada com violência de seu curso, a
bola passando pelas traves de bambu, "goooool", os sem camisa agora
em abraço despudorado, o cabeceador atracado ao magrelo, rolando lascivos na
terra batida, um grandalhão enchia a mão com o orgulho dentre as pernas e,
sacudindo raivoso, num berro rouco e grosso, "chupa isso aqui, seus fila
da puta". Foi então que a estridência dum casal de quero-queros a tirou do
estado de entorpecimento em que caíra, "meu senhor, o que to fazendo
aqui?", e abalou-se pra casa, com as pernas titubeantes, as mãos trêmulas
a segurar com dificuldade a sacola, ondas de achaque assolando o corpo de cima
a baixo.
Marlene não era tão tola a ponto de
desconhecer os efeitos daquele emaranhado de sensações. Mas o vocabulário que
acessava pra dar sentido àquilo lhe provocava terror: concupiscência da carne,
lascívia, devassidão. Chegou em casa e correu ao forno à lenha. Havia ali os
restos da última fornada de pão. Logo estava coberta de cinzas e as esfregava
nos longos cabelos desgrenhados, e não demorou a encher a boca com um punhado,
que lhe provocou um vômito ruidoso, dolorido e necessário.
Sim, a mãe estava certa. Era preciso
afastar-se do mundo, da babilônia decaída, gastar o corpo no trabalho árduo,
sem reservas, e, a todo momento, vigiar e orar, fechando qualquer fresta aos
vapores quentes e furtivos do demônio. Só assim haveria paz. Só assim poderia
viver na presença da mãe.
Passados meses, Marlene não duvidava
mais: tomara o rumo da santidade. A rotina era chão firme. O isolamento, mesmo
em meio aos cultos na igreja, era o único caminho para a iluminação. Evitava as
rodinhas animadas na porta do templo, não reparava que muitas crianças um dia
embaladas em seu colo agora já formavam casais lépidos, cheios de planos. Estava
ali para humilhar-se diante da presença de Deus. Estava ali para reafirmar sua
pequenez, sua insignificância de mulher vil e pecadora, rogando misericórdia ao
Deus de Abraão, Jacó e Isaque.
Mas quando nada acontece, e o tempo
se esvai à larga, é de se esperar o golpe repentino das circunstâncias.
Quem quebrou a rotina foi a própria mãe,
Eurides. Ela, o relógio da casa, um dia deu de não levantar antes do sol.
Marlene dormia num colchonete na sala, preferia deixar o quarto pra mãe, e
naquela manhã estranhou: abriu os olhos e a porta continuava fechada, a casa
ainda em silêncio, apenas os rumores de fora, pardais e bem-te-vis, um ônibus
ganhando a rua, o chiado de vozes no rádio valvulado do vizinho. Não teve coragem
de bater na porta, foi fazer o de costume. Cumpriu as orações e leituras
matinais. Ajeitou a mesa, preparou o chá de cidreira, tirou as torradas de
sempre do pote, e nada de dona Eurides levantar. Foi até o canto de fora onde
ficava a janela, pisou as plantas do canteirinho, encostou orelha na veneziana,
tudo em silêncio. Voltou à porta, olhou pelo buraco da fechadura, a luz
apagada. Decidiu ajeitar a lenha no forno e já tocar fogo pra adiantar o trabalho.
7 horas, e a mãe no quarto. Tinha que entrar. Mas não ousava. Estacou novamente
na porta e, passado o tempo suficiente pra sentir as gotas de suor pingando das
mãos, admitiu três batidas leves. Sem resposta. Quando, num ímpeto, juntou
coragem e apanhou a maçaneta, ouviu o grito de voz áspera e familiar,
"Marleeeene".
Na penumbra, Marlene procurou o
interruptor pera e clicou. Não se lembrava de ter visto a mãe de cabelos soltos
e com roupa de dormir, uma camisola cuja cor original ninguém saberia dizer.
Eurides estava sentada no meio da cama, de ombros curvados, braços estendidos
sobre as pernas. Ao fitar os olhos da mãe, Marlene encontrou-os desorbitados,
estrábicos, bem diferentes dos olhinhos sempre incisivos e inquiridores. Um
odor ácido e profundo tomava o ambiente. A roda mais escura no lençol, ao redor
da mãe, denunciava urina matinal empapando a cama. Sem tempo de refletir sobre
os estímulos sombrios que os sentidos lhe traziam, Marlene ouviu uma ordem,
"Me traz um ovo cozido. Já!".
E Eurides não deixou mais o quarto,
nem mesmo a cama. Às oito da manhã, ao meio-dia e às seis da tarde, do quarto a
mãe gritava ovos cozidos e um copo d'água. Mais tarde, por volta das nove da
noite, ela exigia leite adoçado com açúcar queimado, e só. Não adiantava trazer
outro prato separado com a comida. E apenas as gemas dos ovos ela comia.
Ainda no primeiro dia, Marlene teve
coragem de perguntar, "Mãe, a senhora tá se sentindo bem?",
"Cala essa tua boca maldita, sua filha de Jezabel! Tu não vai corromper
este lugar santo!". Aturdida pelos gritos, Marlene correu da presença
materna e tapou os ouvidos pra não ouvir o restante das imprecações.
Tacitamente, outra rotina foi
estabelecida. A filha entrava, absorta como num serviço litúrgico, pra trazer
as refeições e esvaziar as excretas da comadre, colocada ao lado da cama. Não
se podia abrir janela nem trocar roupa de cama. Os gritos de ameaça da mãe
irrompiam duma insensatez que também impõe respeito. Eurides não visitou mais o
banheiro ou sequer trocou a camisola rota. A fetidez pronto tomou conta do lugar.
Durante o dia longos monólogos ponteados por gritos se dissipavam do quarto
pela casa. Na madrugada, Marlene, encolhida no colchonete, passou a ouvir a mãe
entoar melodias desconhecidas:
Tinha rendas de Sevilha
A pequena maravilha
Que o teu corpinho abrigava
E eu, eu era o dono de tudo,
Do divino conteúdo
Que a camisola ocultava.
Era certo que logo gente
bisbilhoteira viria pra sujar o sossego obtido, ao longo dos anos, com o
desinteresse alheio. Já fazia mais de duas semanas o princípio da condição
especial de dona Eurides. Primeira vez em anos que faltavam aos cultos. Algum
irmão de fé mais antigo, mais por costume que por real interesse, proporia uma
visita pra tomar motivos da ausência. Os vizinhos, também, mesmo que
indiferentes às duas, teriam a curiosidade atiçada — o sumiço da crente
rabugenta, algum pedaço de grito que sobrepujasse a melopeia intermitente de
tevês e rádios.
Marlene manteve a entrega dos pães
e, taciturna, demonstrando não querer conversa, dizia aos clientes que a mãe
estava de repouso pra curar gripe forte. Dona Eurides não gritava mais. Agora
resmungava, numa cantilena renitente, pontuada de gemidos graves, que lhe saíam
da boca como o ranger duma porta emperrada há muito. Durante a noite, em
vozinha afinada, aguda, mas discreta como nunca dantes a filha ouvira, Eurides
entoava as canções desconhecidas. Marlene, atraída por uma recordação que não
era sua, mas que lhe embalava como um mimo familiar, passou a ouvir atenta, noite
após noite, aproximando o colchonete da porta do quarto.
Boneca de trapo, pedaço da vida
Que vive perdida no mundo a rolar
Farrapo de gente que inconsciente
Peca só por prazer, vive para pecar
E foi no meio dessa canção que, numa
madrugada absurda de clara, Marlene pegou a tesoura da caixa de costura e, sem
olhar espelho, podou sem melindre os longos cabelos, até deixar a nuca à mostra.
Em passos leves, ela entrou no quarto, resgatou o baú, enquanto a mãe, um
espectro estendido na cama, repetia a canção, como se sua existência se
resumisse a uma voz a emitir em letra e melodia uma mensagem que só cabia a
Marlene decifrar. Com a chave em mãos, ela ajoelhou-se diante do baú. Ali tão
somente uma camisola de renda. Não. Era a camisola guardada para ela, Marlene. Não
era uma camisola. Um vestido pra noite. Como já tinha visto em mocinhas lépidas
do bairro, nas noites de sexta e sábado, vestidas em tecidos leves que convidam
a adivinhar a textura da pele, que profetizam o desejo de despir pra consumar
de vez o corpo. Marlene despiu-se pra colocar o vestido. Sentiu-se cobiçada por
olhos atrás das paredes. Eurides continuava outra estrofe:
Boneca noturna que gosta da lua
Que é fã das estrelas e adora o luar
Que sai pela noite e amanhece na rua
E há muito não sabe o que é luz solar
Marlene deixou o quarto e fechou a porta. Ao fundo, um fiapo de melodia abafada, ouvida pela última vez enquanto vivesse. Com os trocados que juntou desde aquela manhã inusitada, compraria uma passagem para a capital ou, se não desse, para a cidade mais próxima dela que a grana permitisse. Quem sabe se, nos arredores da rodoviária, não levantava mais uns bons trocados? Quem sabe se, na grande cidade, num inferninho qualquer, não encontrava o cantor boêmio que assoprara as canções da noite nos ouvidos da mãe?
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