sábado, 25 de abril de 2020

O RETORNO DO CAVALEIRO ANDANTE


"A monareta tá pronta na oficina", o Zé da Magrela despachou aviso de cima da barra-circular, sem esbarrar velocidade, pedalando embalado, que a hora de abrir a bicicletaria depois do almoço passava, 'eita! dia de dobradinha em casa a gente enche o bucho e alarga a sesta'. Diguim, de cócoras na calçada, martelava uma lata de óleo com vidro de lâmpada queimada dentro, melhor não tinha pra deixar o cerol fininho que, só de dar relo em linha, cortava. Ouvindo de soslaio, sem levantar cabeça, e mantendo ritmo do martelo, tomado escondido na caixa de ferramentas, ele soltou a voz mal afinada, "já passo de lá, Zé". Tinha uma vergonha disfarçada da monareta azul 1973; era bicicleta doutra década. E a molecada agora andava era no modelo bicicross, bmx da monark, ou caloicross, a crozinha, que algum primeiro pai da vizinhança tinha comprado no carnê de prestações pra exibir o de melhor que podia dar ao filho, e acabou contaminando os desejos de moleques, cujos pais não podiam engolir o despeito dos outros, enfim, as crozinhas se multiplicavam no bairro assim como as dívidas, os bicos e os esforços pra não dever mais na praça.

Diguim ia até as últimas consequências pra defender a dignidade de sua 'bici de véio'; primeiro o argumento falado e cuspido, empréstimo ao pai, "essa é uma jet black, um clássico! paralamas e cobre-corrente cromada, garupeira e banco anatômico", quanto esforço pra decorar as qualidades! mas quando as gargalhadas ainda insistiam no 'bici de véio', ele chamava pro desafio, uma corrida em volta do quarteirão, que ainda não tinha asfalto, pra provar que trem novo não resolve o lado de ninguém. Então a prova que tinha de se dar era concreta, pelo que ele não poupava os gambitos e todo fôlego e toda estratégia, uma fechada de leve pra jogar o oponente em cima da kombi do Mirão, quando esta estava no ponto perto da esquina aguardando frete, ou até mesmo uma bicuda discreta de lado, quando as bicicletas emparelhadas — era bico e queda.

Diguim não se sentia no direito de amostrar vergonha, afinal a monareta era orgulho de primeira conquista de pai pra filho. Seu Jurandir tinha feito muita hora extra na panificadora Guidoni pra conseguir comprar a bicicleta de segunda mão, quase nova. Isso já fazia uns pares de anos, quando o filho era apenas um bebê, e o padeiro Jura, enquanto pedalava o presente muito antecipado, imaginava o menino crescido, montando aquela belezura e descobrindo o equilíbrio, sem rodinha, "meu filho não vai ser mole", tão logo figurando a calanga dominada pra rodar com prazer de menino. Posto, portanto, Diguim soubesse o valor de agradar o pai, nunca executou o desaforo ensaiado de pedir outra nova, quanto mais ao ouvir dia-sim-dia-não "meu filho, essa menina aí é companheira pra vida toda; é só cuidar". E zelo não faltava: a cada dois meses a monareta ia pra manutenção no carimbado Zé da Magrela, pra fins de lavar e engraxar a corrente, trocar um ou outro raio, tirar o jogo dos aros e regular os freios. Sem contar que toda sexta o garoto lavava e encerava a relíquia, além de não deixar passar a noite no sereno, sempre guardada num canto da sala, não facilitando também pra ladrãozinho que entrasse em quintal de madrugada. "Rodrigo, vem comer que já tá frio", o grito da mãe interrompeu o bate-que-bate tanto na lata quanto na caixola de recordar, 'não posso ser um ingrato', e lá foi devorar o arroz, feijão, angu e ovo com o apetite comum às consciências tranquilas.

"Ah, espia que esse breque tá tinindo, Diguim! É só triscar o manete, ó. E dá uma olhada cá no giro da roda; nada de jogo. Também fiz um agrado: limpa-raio de macarrãozinho colorido. Seu Jura, seu pai, vai fazer gosto!", Zé da Magrela exibia o orgulho do serviço na monareta virada de borco sobre um encerado, "pra não arranhar guidão e banco", e fazia questão de que o moleque guardasse relato detalhado pra contentar o cliente antigo e fiel.


Ao dobrar a esquina, ele avistou o rebu de bicis em frente a sua casa, o trio de amigos atinados em bando: o Pioio ensaiando empinada, roda da frente pra cima, o Nicão testando abrupto o freio da frente, pra cima co'a roda de trás, o Corneta deitando curvas num oito imaginário. Quando firmaram vista na aproximação dele, "aê, Diguim, chegaí!", "a gente tava t'esperando", "bora pra lagoa caçar". Dezembro de águas fartas, a também chamada Lagoa dos Cavalos de certo estava vertendo pelas beiradas pra regar brejos, tempo bom pra caçar rã, peixinho mato-grosso e cará de topete. Diguim constatou que a trupe já trazia mochila com a tralha nas costas, com estilingue, bolas-de-gude (tipo biloca miúda) e pedras-castelo bem escolhidas, sacolinha de mercado, cantil, um punhado de restos de farinha e grãos pra cevar. No susto, ele apressou buscar seus pertences, mas fugindo à escuta da mãe, que lavava roupa no tanque, com receio de que ela frustrasse o ensejo da aventura.

O sol estava de apertar os olhos, e a umidade do verão, chovera a noite toda, fazia da tarde um bafo quente sufocante. Eles saíram do Jardim Jamaica, atravessaram a Cohab 7, divisaram a antiga chaminé, no limite da cidade, e após cruzar o elevado da linha do trem, seguiram por um braço de trilha até a estrada da lagoa, que contornavam a fim de alcançar o ponto mais palatável das águas. Não estava fácil pedalar buscando a terra mais firme em meio às escamas de lama mole deixadas por caminhões. Se passassem ali há uns vinte dias, ainda seriam ladeados pelo mar de cana, mas o corte acontecera, então só se viam os desenhos curvilíneos recobertos de palha seca, onde rebrotaria a cana-soca. Diguim achou até bom não ter cana, pois não veria Pioio se comprazendo com matança das avoantes, aquelas tadinhas de arribação, que ele justificava matar pra comer, "minha mãe deixa igualzim carne de codorna", mas o gosto mesmo era testar mira no alvo vivo, acertando quantas possível, muita vez deixando várias agonizantes pra trás. O Corneta ia no embalo, pra provar destreza no estilingue, até acertar uma e ficar com dó, no que pedia pro Pioio buscar a caça ou pedia perdão pra Deus por tirar vida de criação inocente. Por isso Diguim sempre levava uma latinha vazia de massa-de-tomate pra ele e o Nicão brincarem tiro sobre um mourão de cerca enquanto Pioio tocava a malvadeza.

Mas nesse dia não tinha motivo pra parar, nenhum teiú na estrada que dispusesse rastro veloz de distração, nenhuma cana pra partir na coxa e sugar caldo. Àquela hora, ainda o tempo firme, no céu acima deles apenas uma ou outra nuvenzinha esgarçada, tímidas em oferecer qualquer tiquinho de sombra. As nuvens polpudas anunciavam-se num dos flancos do horizonte, coisa mais pro fim da tarde. Como de costume, eles amarravam a camiseta na cabeça, como réplicas de turbante, menos o Corneta, que tinha tanta vergonha dos peitos e mamilos salientes a ponto de nadar sem tirar camisa. Pioio sempre ia na frente, queria enxergar o que fosse de novo primeiro, sedento de gritar alardes mesmo sem mote — era do seu feitio sentir-se sobranceiro, no caminho e também sobre os demais, "ô Nicão, já foi visitar a dama do ferro-velho?", e ninguém via graça além dele, "melhor o rei da sucata que o pudim de pinga, né não?", continuava no deboche à frente. Os outros três revezavam posições, ora em par, ora em fila, ora o trio alinhado, sem disputar besteira da dianteira. O Nicão preferia seguir lento e constante, concentrado quieto, como mansa segurança do bando. Ele que morava só com o pai, cuidando todo dia de buscá-lo no bar, caindo de cachaça, homem perdido depois que a mulher fora embora com o dono dum desmanche de carros. O pai do Nicão tivera emprego cobiçado, era encarregado de eletricistas num setor da Zanini, onde conseguiu emprego aos catorze anos. Nunca teve cabeça pra investir o salário e, com a perda de mulher, a pinga acabou de lhe tirar tudo. Sem o emprego, passou a fazer bicos, puxando gatos de energia, instalando ventiladores, consertando chuveiros e outros serviços miúdos, cujo pagamento incerto ficava todo no bar e nas apostas de truco. O aluguel da casa vários meses atrasado, motivando uma ação de despejo, e o Nicão, arrimo de pai bêbado, começou a trabalhar no lava-jato do Nero a fim de, pelo menos, comprar comida e evitar a suspensão de energia e água em casa. Mas era uma quarta-feira, movimento fraco, só dois carros pra lavar, e o patrão disse que ele não precisava voltar depois do almoço. Só assim pro Nicão juntar-se ao quarteto novamente, e sua presença os deixava tranquilos, porque sabiam da força e habilidade que ele não exibia à toa. Era ele quem achava as melhores forquilhas, quem afinava a melhor vareta pras pipas, hábil no fio da faca e preciso na força justa.

Enfim avistaram a taboa recobrindo o brejo ao redor e, pelo meio das águas, as manchas dos aguapés, que já tomavam boa parte da lagoa. Foi hora de deitar as bicicletas numas touceiras pra explorar águas. O Pioio instigava alvissareiro a busca de rã-pimenta, gordotas vermelhas com tempero embutido por natureza, "de lamber os beiços", dizia estalando a língua. Mas carecia encontrar difíceis esconderijos, pois as bichinhas saíam mesmo à noite. Diguim não queria saber de rã. Horror ao ter visto uma sendo frita na panela de dona Izildrina, mãe do Pioio. A rã estrebuchava as patinhas como se ainda viva, sofrendo suplício. Ele não conseguiu experimentar a iguaria e teve que aguentar o riso desaforado de mãe e filho. A saber, então, que o interesse de Diguim nas águas era providenciar peixinhos. No penúltimo natal o pai lhe deu um aquário pequeno; mandou cortar os vidros, arrumou cola de silicone com uma colega encanador e comprou um motorzinho-bomba recondicionado. "Aquário não é coisa só de rico", meu filho. Contudo, o menino descobriu que não era tão fácil regular a água pros peixes. Também não sabia que ela deveria descansar, maturando uma colônia invisível, antes de receber as cores de nadadeiras e barbatanas. Pois quando trouxeram, afoitos, uma dúzia do mercado municipal de Ribeirão Preto — quatro paulistinhas, casal de colisa, tetra e molinésia, além dum cascudinho e um beijador, todos debatendo cores no saquinho plástico — tão só o rasteiro cascudo sobreviveu depois de apenas uma semana. A partir de então, seu Jura afirmou não rasgar mais dinheiro com bicho frágil, e se Diguim quisesse o aquário vivo, que fosse buscar peixinho em lagoa e açude. E ultimamente a caixa de vidro andava vazia, depois da morte dum cará que crescera além do esperado, tomando conta do espaço todo. Era o Caolho — o peixe tinha sobrevivido ao fungo do algodão-branco, mas acabou ficando sem um olho, apenas restando a concavidade cinzenta e oca. Caolho reinou absoluto e solitário até morrer de velhice. Mas Diguim pressentira o momento de repovoar o aquário, por isso o vidro já cheio, decorado com pedaço de tronco e uma lasca de pedra mineira achada entre as sobras duma construção.

Mas a Lagoa dos Cavalos não ofereceu peixe. Mesmo cevando os cantinhos corretos e arrumando com esmero a armadilha de cano PVC, Diguim não pegou nada. Pioio alardeou a primeira rã, "essa vale uma coxa de frango!", e o Corneta acudia curiosidade, levando rápido o saco de cebola onde guardar a caça. Nicão sentou-se ao pé duma árvore sangra d'água e tirou do embornal um toquinho roliço e o canivete, "vou talhar um apito". Diguim então mudou de posto, tentou de todo jeito onde sabia esconderijo de alevinos, e nada. Por fim decidiu,

"tô subindo lá pro Trianguim, no Engenho Central; alguém vai comigo?",
"cê endoidou, Diguim?",
"tudo isso é preguiça de pedalar meia horinha?",
"mas olha esse sol rachando", "e aqui tá recheado de rã! larga mão dessa bobeia de peixinho pra enfeite",
"podem ficar qu'eu vou sozinho".

Viu o Nicão ainda coçar a cabeça, meio indeciso, mas não enrolou espera. Pegou a monareta e rumou caminho.

Não tinha tino de chefia. Fosse mais paciente com traquejo de argumento, quem sabe oferecendo de agrado uns cromos mais raros do campeonato brasileiro, talvez tivesse companhia. Mas era bom pedalar sozinho e seguir por conta. O pneu sulcando tenaz a terra, o farfalhar dos canudinhos nos raios, a sensação de abrir um vácuo na tarde como se qualquer desejo pudesse ser submetido à força das pernas — a liberdade de girar uma decisão de repente, sem impedimentos. Não levava relógio, mas calculou que, mantido o ritmo, em hora e meia daria tempo de ir-e-voltar, com os peixinhos de alegria. Por isso apagou qualquer distração e fechou o foco na estrada, seguindo, fronte altiva, a linha vermelha.

Não tardou cruzar o mata-burro, marcando os limites do velho engenho, e avistar as três lagoas formadoras do Trianguim. Desceu a trilhazinha, ninguém nas redondezas, melhor assim, só tombar a bicicleta numa moita. Arrumou animado a armadilha, providenciou uma mistura de ceva, era hora de valer a tarde: quem sabe um punhado de matos-grossos, mas não descartaria também lambaris.

Quando se agachou na beira pra arrumar a tralha, o pavor! Do barranco oposto, saindo duma touceira e escorregando, sinuosa, um absurdo longilíneo, verde-escuro-mosqueado, uma sucuri. Na água barrenta, Diguim acompanhou, ainda sem reação, o movimento ágil, mas sutil, daquele bicho que diziam engolir bezerros e meninos. O pavor. Coração na boca, largou tudo pra trás, arrastou desembalado a monareta até chegar na estrada e saiu pedalando sem encostar bunda no selim.

Péssima ideia andar sozinho praqueles lados. Péssima hora pra decidir iniciativas. Sabia que a sucuri estava longe, ameaça remota, mas o pior era não ter com quem dividir desespero. Nem gargalhar de nervoso faria sentido. Sentiu-se um reles moleque medroso. Não era do feitio pra mato. Se tivesse apenas avoante e rã pra comer, apenas esses bichos tão disponíveis, ele morreria de fome. Não passava de um fraco. Uma farsa; sim, uma farsa sua habilidade com a bicicleta, pois de nada adiantava chegar primeiro se não cumprisse outra qualquer finalidade. De certo o Pioio perseguiria o animal; esse não tinha frouxidão, melindre, frescura — nascido caçador. O caminho de volta só fez pesar o sentimento de vergonha e derrota. Começou a escolher mal os desvãos na terra, patinando as rodas em sulcos lisos, vez ou outra tendo que apoiar um pé no barro pra não cair. Os companheiros de meia-viagem ainda estariam lá, aguardando? Como justificar o retorno de mãos vazias?

Chegou à Lagoa dos Cavalos, e tudo era um quase silêncio. Pensou em seguir na estrada sem esbarrar, mas, por desencargo, entrou pela trilha do matagal que conduzia ao ponto onde os amigos ficaram. Vislumbrou algum movimento: era o Corneta, com a bicicleta, na capoeira, desenhando curvas num oito imaginário. Não teve reação com a chegada de Diguim, "Corneta, cadê os dois?", mas ele surdo e calado, cabeça baixa, total absorto no oito imaginário. Então ele avistou figuras, debaixo da árvore sangra d'água. Acudiu com a monareta, aproximando-se, pra entender visão. Pioio estendido, a garganta aberta de fora a fora, num talho cirúrgico, o peito empapado de melaço vivo e rubro. Ao lado, Nicão de joelhos, o canivete ainda na mão, enquanto o olhar se erguia em súplica, "Diguim, ele não tinha o direito..."