sexta-feira, 30 de setembro de 2016

LUZ QUE ANDA SEM RUMO | Alexandre de Oliveira Martins

              Com Vagalumes sem noite / contos entre sombra e luz, Artur Ribeiro Cruz debuta no que classicamente se denomina gênero narrativo. Poeta de sofisticação atestada por seu “Semanário do Corpo” (2015), obra também de estreia no gênero lírico, Cruz mostra-se igualmente exímio no manejo preciso da contação de histórias a partir de combinação ímpar entre ética, técnica, temática e estética. Embora técnica e estética estejam quase sempre amalgamadas na construção literária, Artur não deixa dúvidas de que é da primeira que emerge a segunda. Por sua vez, as opções temáticas, desenvolvendo dilemas éticos profundos, acabam por definir o ritmo, a cadência e as opções morfológicas e sintáticas realizadas pelo autor no encadeamento e progressão dos elementos narrativos, de maneira especial tempo, espaço e personagens.

            Não por outro motivo, os nove contos que compõem o livro apresentam, por exemplo, distintas e combinadas formas de grafar diálogos: entre aspas e no corpo do texto em “A última ceia”; com o clássico travessão em “Corcel afogueado, ou o périplo de Orosmindo”, “A procura” e “Tio Valdim”; discurso indireto livre mesclado com aspas em “Canção noturna” e “Notas de solidão”; alternância linha a linha entre narração e diálogo aspado no final de “Arquitetura de um voo” e principalmente com linha a linha de diálogos aspados em “O retorno do cavaleiro andante”; por fim, recurso do uso do itálico em “Um sofista”. Cada opção gráfica parece servir de maneira específica ao tema desenvolvido, gerando efeitos estéticos diferentes conforme o conto, mas definitivamente apropriado ao desenvolvimento de cada história. Esse procedimento parece mostrar-se presente nas mais diversas instâncias de análise e apreciação do texto de Artur.

            Os contos aparentam ter em suas facetas visíveis distintas, por exemplo, no caso específico da manifestação peculiar gráfica dos diálogos, o que se observa em sua face invisível, aquela do significado, não, por evidente, a do sentido somente vocábulo a vocábulo, mas a do efeito de sentido advindo da relação entre o tecido semiótico interno a cada conto e a função externa de uns com os outros, entre os nove apresentados, tornando-os, cada unidade, um signo completo e complexo, só percebido se em sua totalidade e se na ludicidade enredada por seus diversos elementos em diferentes camadas do plano da expressão e do conteúdo da obra. O nono conto ironiza essa suposta unidade, mas torna-se ele próprio a 'prova dos nove' de que o livro é um todo organizado, arquitetado.

            A técnica narrativa de Cruz é ainda percebida no controle esmerado, seja para mais ou para menos, tanto da extensão rítmica (fraseado, paragrafação, recursos de oralidade), quanto da modulação temática (variação delicada e cortante do assunto e da perspectiva) e da narração (controle do que o leitor deve ou não saber sobre o que se conta, uso da primeira ou terceira pessoas). Esses elementos, associados ao gran finale de cada conto — incluindo o nono conto, que em si é um gran finale para o livro —, conferem à obra um tom enxuto e exato, nos termos de Julio Cortázar, para quem o conto seria uma luta de boxe vencida por nocaute, diferentemente do romance, vencida por pontos. Os contos deste livro certamente nos nocauteiam. Mas ao modo de Muhammad Ali. Com sutileza, firmeza, intenção, precisão e poesia.
            Formado por sugestivos dois 'versos', sendo o segundo uma espécie de  indispensável aposto do primeiro, o título do livro, como de toda obra bem planejada, em si é uma síntese e metonímia de sua totalidade. De pronto, o primeiro 'verso' (“iluminado” pela grafia em caixa alta) instaura um oxímoro: vagalumes sem noite. O 'verso/aposto' seguinte (contos entre sombra e luz [e não entre luz e sombra]) completa a imagem paradoxal, como se algo (os pirilampos vaga-lumes?) se interpusessem à luz (sem noite), gerando um espaço real mas de transição onde justamente os contos se inseririam.

            Essa imagem advinda do título é decisiva para a fruição das histórias sombrias, mas repletas de luz poética, escritas por Cruz. Ao contrário da estratégia de Poe, Artur acha o tom soturno de seus contos não a partir da criação de suspense narrativo, como à Hitchcock, mas a partir de combinação de diferentes técnicas, especialmente a machadiana (ironia, refinamento, intertextualidade, diálogo com o leitor, mergulho introspectivo, entre outras) e a roseana (efeitos sintáticos, transubstanciação da oralidade, tom místico, ambientação simultaneamente interiorana e universal, entre outras), em constante comunicação com um estilo que se poderia neologizar de 'intercosmos', uma mescla da aguda visão sobre sua cidade natal, Sertãozinho (interior de São Paulo), com o mais cosmopolita olhar sobre a sociedade e o mundo.

            Outra comparação que se faria, imprecisa, por certo, é a de que a leitura de seus contos por vezes poderia literariamente fazer recordar parte da opção cinematográfica de Lars von Trier, com seu Dogville. Em seus contos, Cruz desnuda tanto o que há por trás de muita sombra quanto – e principalmente – o que há por trás de muita luz, ou do estritamente essencial das coisas. Em outros termos, similarmente ao reggae do grupo Ponto de Equilíbrio, Vagalumes sem noite nos recorda que "nem tudo que é negro remete a escravidão" e que "nem tudo que é preto remete ao medo não". Ou que o excesso de luz cega tanto quanto a escuridão, na máxima de Raduan Nassar. Mantido, portanto, o símile sugerido pelo título do livro, não é difícil vislumbrar o caráter positivo da escuridão em termos literais ou figurados. Literalmente quando se observa o que ocorre com os próprios vaga-lumes (insetos), que estão desaparecendo da natureza, entre outros fatores, pelo aumento da presença de luzes artificiais em áreas onde eles se localizam, fato que os impede de utilizar a própria luz para encontrar seu parceiro sexual, comprometendo assim sua espécie. Figuradamente quando as sombras possam ser compreendidas como redenção, a ver nos surpreendentes desfechos dos contos aqui expostos.

            Se Trier, no cinema, opta por um cenário invisível (sem paredes, janelas ou portas), permitindo que o espectador veja os coadjuvantes em seus afazeres longe do foco principal da ação, Cruz, embora pareça também optar por um olhar essencialista, fixa-se no palco principal da ação (e inclui paredes, janelas e portas), desfocando a lente, portanto, da “coxia, camarins e bastidores”, e acentuando os efeitos que as gradações de luz têm sobre o visto e o entrevisto exclusivamente no centro, numa espécie de releitura contemporânea estética-filosófica-existencial de preceitos barrocos. Como se, usando um farol poderoso, desejasse ver não [somente] o objeto iluminado pela luz, mas tudo aquilo eclipsado por esse mesmo objeto. Entretanto, ao contrário do pessimismo das também nove histórias da película Dogville, “Vagalumes sem noite”, ainda que também mostrando a desumanidade que emanaria da humanidade, compõe um quadro à brasileiríssimo e menos determinista da complexidade de viver, seja nas metrópoles, seja no interior do país, seja sozinho ou em grupo.

            Lembrando, pois, umas Fleurs du Mal em prosa, permeia — que o leitor não se iluda — uma melancolia sarcástica por todas as histórias de Vagalumes sem noite, amarradas por um fio isotópico do campo semântico eufórico das luzes (“afogueado”, em Corcel afogueado...; “arquitetura” e “voo”, em Arquitetura de um voo) ou disfórico das sombras (“ceia”, em Última ceia; “noturna”, em Canção noturna; “solidão”, em Notas da solidão), ou ainda — e sobretudo — uma mescla de ambos não só nos demais contos, como no desenvolvimento modulado entre euforia e disforia nas histórias mesmas cujos títulos sugerem apenas um caminho de leitura. Essa opção parece de certa forma repetir literariamente o próprio trajeto etimológico do vocábulo vaga-lume, identificado inicialmente em Portugal por caga-lume, em referência às glândulas luminescentes da parte traseira do inseto nomeado. Por pudor, trocou-se a letra C por V, gerando o significado de 'vagar', 'andar sem rumo'. Vaga-lume seria, assim, o mesmo que “luz que anda sem rumo” (e em plena luz do dia, no caso deste livro). Eis aí um outro traço que parece comum aos personagens das nove histórias aqui apresentadas: igualmente ao inseto, cujo tecido que emite a luz é ligado na traqueia e no cérebro, dando-lhe total controle sobre sua luz, os personagens deste livro, embora possam controlar a 'própria luz', perambulam sem rumo com sua inútil fosforescência diante da aparente claridade da vida, que os invisibiliza. Este livro não teme revolver a escatologia da luminosidade.

            O que há entre a sombra e a luz? Para a Física, no âmbito do princípio da propagação retilínea da luz, em um meio homogêneo e transparente, como o ar, a luz se propaga em linha reta, de modo que a formação de sombra (ausência de luz) e penumbra (região parcialmente iluminada), dá-se quando a luz é obstaculizada em seu caminho por um objeto opaco (todo objeto que não permite a propagação da luz através de si). Metaforicamente, as histórias de Vagalumes sem noite se interpõem nesse locus real mas fugaz, efêmero e contingente que dura o quanto durar a luz ou o quanto permanecer o objeto opaco que a bloqueia. Por extensão, é um livro cujas histórias, na expressão e no conteúdo, alternam-se não dogmaticamente entre a razão e a emoção, entre a poesia e a prosa, entre o clássico e a vanguarda, entre o local e o universal, entre o homicídio e o suicídio, entre a musicalidade e a literalidade, entre a modernidade e a pós-modernidade, entre Apolo e Dionísio, entre a sanidade e a loucura, entre a submissão e a desobediência, entre a infância e a maturidade, entre a ingenuidade e a maldade, entre a solidão e a multidão, entre o ideal e o real, entre a verdade e o sofisma, entre a caridade e a crueldade. Todos sempre em relação dialética.

            O último conto, por seu caráter metalinguístico e irônico, parece revelar o grau de consciência que Cruz tem de sua literatura e da literatura. Aparentemente deslocado do tom dos demais, este derradeiro insinua ser uma reflexão irônica sobre o procedimento construtivo dos anteriores, essencialmente baseados na procura de uma alta elaboração da linguagem e de um aproveitamento máximo dos elementos narrativos tradicionais. É também uma gargalhada metalinguística sobre os rumos pós-modernos da literatura e sua “desconstrução do gênero, dissolução do enredo, busca que não progride”. Na dúvida, Cruz mostra-se competente tanto em uma quanto em outra estética, como bem provam suas nove belíssimas histórias.

            E por isso seu livro merece ser saudado com grande entusiasmo.


            Salve, salve, Artur!


Alexandre de Oliveira Martins é graduado e Mestre em Letras pela UNESP. Graduado em Relações Internacionais e Integração pela UNILA. Doutorando do Programa em Integração da América Latina – Prolam, pela USP.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

QUE ESTEJAS ARMADO | Katiuce Lopes Justino


       Um livro de contos não é uma coletânea. Está longe de ser. Mas, no caso de Vagalumes sem noite, é mais que um constructo arquitetado, é, pois, organicamente tecido como "projeto-projétil", que lança a necessária pólvora da incerteza sobre a condição humana já em seu primeiro estampido, com "A última ceia" e vem recolher a cápsula vazia, espécie de Tao, como na visão de Lao Tsé, em "Um sofista". O vazio cínico de estar nu propositalmente diante da plateia hipócrita. Sintomas de uma racionalidade extrema.

Por outro lado, o da emoção pungente, a memória involuntária daquela cidadezinha qualquer não é apenas uma fotografia na parede, é a própria quarta parede, permeável ao olhar obsceno do diretor / autor: ali está a miséria das interdições sem razão outra que a circunscrição abafada de um quadrilátero cultural do interior de São Paulo. Tal indigência é contrabalanceada literariamente pela riqueza de nuanças que lhe confere o narrador. Este, embora imbuído do cheiro e do gosto locais, é um sem-limites herege, necessário, ímpio, despudorado, mas cuja poesia batiza, expurga, canoniza.

Com influências literárias marcadas por regionalismos de outras gentes e de outros sertões, seu estilo encontra a brecha da inovação na tratativa de costumes tipicamente urbanos, ou seja, aquilo que no ambiente natural rude costuma ser fartura, imensidão e imponência, no horizonte destes vaga-lumes é “a mesa com a toalha vinílica replicando, às dezenas, uma natureza-morta falsa e tropical”.

Quanto à progressão temática, do ponto de vista dos diversos narradores, que se alternam em primeiras e terceiras pessoas, é recorrente a figuração de uma espécie de exilado que, ao recriar o passado, passa por certa formação, lembrando aqui a sensação trazida pelo Bildungsroman – o romance de aprendizagem cunhado na Alemanha.

E é nesse ponto alto que em “Um sofista” o narrador multiplica as máscaras e fala diretamente a seu público, esfacelando em graus ficcionais as diversas camadas com que pode contar um farsante, um prosador ou mesmo um... professor!

Que não vá o leitor enganado de receber desses “quadros interiores” impressões leves em cores tênues da paisagem bucólica de uma Sertãozinho passada a limpo pelo crivo da consciência estético-literária. Se abrires este livro de contos, que estejas armado. Mas se venceres a batalha, verás a iluminação obscura do espírito, na maioria das vezes invisível no clarão cotidiano, que é também uma espécie de vaga-lume triste no tempestuoso palco das relações humanas.

Katiuce Lopes Justino
doutora em teoria literária pela Unesp

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

CALOR, CANA, SOLIDÃO | Chico Lopes


       Vagalumes sem noite é a estreia de Artur Ribeiro Cruz no conto. O gênero, embora encontre dificuldades comerciais enormes num mercado editorial dominado por romances, biografias e livros de apelo raso e fácil, é um preferido dos verdadeiros escritores brasileiros, que o adotam para limar seu instrumento, a palavra, e enfrentar os desafios da narrativa curta para expressar concisa e convincentemente um mundo pessoal que se expõe e desdobra. Entra-se no conto como se entra numa disputa feroz com o xadrez literário: é necessário exprimir o máximo, reduzir personagens e filigranas, ser sim literato, ser sim lírico, mas com a máxima cautela para que a compacta solução não desande e se perca a partida até por excesso de habilidade e recursos.

        Eu conheci Artur como poeta em Semanário do corpo e, praticando os dois gêneros como ele, sinto que há uma afinidade natural entre conto e poesia, visto que ambos aspiram à síntese, aspiram a dizer muito recuperando a magia e a eficácia da palavra bem escolhida e posta no lugar certo para os fins certos.

        Esta, confesso, é uma estreia que me tocou de perto, tendo lido trechos dos contos de Ribeiro Cruz antes que chegassem a tomar a forma definitiva. Começo por “A última ceia”, que, posto no início do livro, já nos dá um panorama do que virá. Conto excelente, traz uma pungente Elen que, estigmatizada por ser filha de uma prostituta e com um filho na barriga, dando-se a homens brutais em meio a canaviais paulistas, sentindo que o encadeamento fatídico de sua vida tende a prosseguir, toma uma decisão.

       Senti uma imensa tristeza, e compreendi a dor de Elen na estreiteza mental de um contexto que conheço bem: o desse interior paulista onde Ribeiro Cruz nasceu (Sertãozinho) e reside (São José do Rio Preto). Entre oceanos de cana usurpadores de uma paisagem que já foi muito mais bonita, orgânica e variada, entre cidades pequenas e médias que se notabilizam por uma atividade comercial intensa e não raro uma total ausência de espírito e cultura, vem o registro lírico, mas sem ilusões, de vidas pequenas, proscritas, esmagadas por preconceitos e limitações que dificilmente podem ser vencidos. A decisão de Elen significará, na verdade, o único resgate possível a uma alma que quer se preservar e preservar, simbolicamente, o frutinho que carrega.

       Sinto perfeitamente o que Ribeiro Cruz pinta: sou de Novo Horizonte, SP, não tão longe de Sertãozinho e Rio Preto, e meus contos, desde muito cedo, procuraram seguir um projeto definido, ainda que sinuoso – registrar esse mundo de modo mais honesto do que o via registrado em geral na literatura brasileira, como se fosse constituído de pequenos paraísos interioranos cheios de “causos” pitorescos e personagens felizes com a vida, de bem com seus opressores seculares etc. Essa visão hipócrita e edulcorada sempre foi favorecida por literatos oficiais, daqueles que, em palanques de feriados municipais, deitavam tudo que conheciam de retórica parnasiana para exaltar do modo mais bairrista possível quimeras do poder e da cegueira. Quis que, nos meus contos, a realidade urbana do país em que vivemos presentemente aparecesse com clareza – para mim, as cidades pequenas e médias do estado de S. Paulo querem ser simulacros regionais da capital metropolitana, adotando, com a globalização, seus procedimentos, injustiças, cafonices, falsos benefícios, shoppings, impessoalidade e solidões. De modo que estou feliz por encontrar em Ribeiro Cruz um cúmplice talentoso e disposto a não fazer concessões a mentirinhas ou meias-verdades complacentes e confortáveis.

         Há nesse cenário um pouco de Paraíso? Sim, claro que há, mas ele não está desprovido da indissociável (e literal) Serpente, como se verá no conto “O retorno do cavaleiro andante”, onde um passeio de bicicleta de amigos, que vão caçar rãs numa Lagoa dos Cavalos, transborda em lirismo descritivo da fauna e flora regionais, mas é subitamente invadido por um senso trágico de realidade, que passeio juvenil algum jamais poderá abolir. As cidades podem oferecer ainda, em suas cercanias rurais, alguma ilusão de passado bucólico, mas oferecem sobretudo “vilinhas verticais” onde personagens como os de “A procura” e “Notas da solidão”, que vão se afundando em isolamento ou relações falsificadas a ponto de chegarem ao delírio ou a se ensimesmarem para sempre em suas pequenas vidas. Nesses prédios (gabados pelos bairristas deslumbrados, que neles veem a feliz realização “caipira” do sonho metropolitano) o que há são solidões contíguas, vidas que se perdem e se anulam, sonhos para sempre sepultados entre um corredor escuro e outro.

        Tenho que destacar um conto que, a meu ver, retrata muito do que vai pelo ar dessas cidades (e talvez de todo o país). É esse exemplar “Canção noturna”, dueto de mãe e filha evangélicas que retrata tanto a repressão sexual que é feita em nome de ideias do Velho Testamento e pregada por pastores interesseiros quanto a verdade universal de que o reprimido não poderá permanecer indefinidamente como tal. Ribeiro Cruz resolve isso captando essas duas vidas, de Marlene e sua mãe, dona Eurides. Já houve entre elas um Romero pai, mas as deixou – era um desses desertores meio patéticos e macunaímicos que, por causa de sonhos nada comuns e uma vontade irresistível de reverter a “normalidade”, parecem atrair Ribeiro Cruz e valer sua simpatia (veremos isso no comovente “Tio Valdim” e no peão Orosmindo, com seu périplo de Minas a Sertãozinho e sua vontade de não ficar em parte alguma). As duas vivem entre rezas e mortificações, até que um dia a mãe amanhece cantando “A camisola do dia”, de Nelson Gonçalves. E virá ainda a debochada “Meu vício é você”, e, claro, Nelson era na certa um ídolo do pai. A canção noturna, feita para o desnorteio, as obceca, e a figura do pai ganha o contorno de uma salvação pelo escape dionisíaco.


      Esta, garanto, é mesmo uma estreia promissora, porque encontrar contos com essa profundeza em livros de estreantes não é tão comum assim. Ribeiro Cruz parece nos oferecer um determinado microcosmo, que conhece muito bem, e dentro dele se move com uma desenvoltura de veterano, lembrando Rosa, Faulkner e outros escritores que captaram, no grão particular e na linguagem regionalizada, algo que vai muito além do pitoresco regional ou dos cartões postais de cidades que gostariam de ser vistas pelo que não são.


Chico Lopes é escritor em vários gêneros (conto, poesia, romance, ensaio) e também tradutor de ficção em Inglês. Tem publicados três livros de contos, dois romances, dois livros de poesia, dois livros de ensaios e um de memórias. Seu romance de estreia, O estranho no corredor, recebeu um Jabuti em 2012. É também pintor e pratica o jornalismo cultural escrevendo sobre livros e cinema.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

OS VAGALUMES ESTÃO CHEGANDO



Enquanto eles não chegam, deixo a você, leitor, um trecho do primeiro conto do livro, "A última ceia":

"Ela sobe os três degraus até a sala, tira os saltos pra pisar o assoalho, o caminho à esquerda, desvia a cabeça da prateleira de mão-francesa, onde descansa o rádio valvulado, o bichano ronrona entre seus tornozelos, enfim a porta de ripas, o quarto, o quarto onde não dormirá, onde ela abre os olhos e vê que a aurora se anuncia discretamente pela veneziana. Mais uma vez ela buscará a pasta na última gaveta da cômoda, a coleção de papéis-de-carta, os traços singelos de mocinhas ao piano, vestidos rodados, passarinhos soerguendo cartazes enrodilhados ao amor, jardins em que pequerruchos corados, bochechas fofas, abraçam-se, uma vida em tons pastéis. Ah, mas o verdadeiro rosto entrevisto no espelho da cômoda é tão só uma cópia ordinária de madona barroca, mais-escuro-menos-claro, o rímel a escorrer visgo dos olhos de amêndoas, os cachos negros insinuando pelas têmporas arabescos, o pescoço longilíneo, esfumado em laivos violáceos como mármore antigo; um busto de ruínas. Ela desvia o olhar da própria imagem. Toda fuga é provisória. Nunca mais o quarto pra dormir, nunca mais, por isso ela busca um dos papelotes na bolsa, estica uma carreira sobre a folha da pasta, alcança um canudinho de mil cruzados pra que enfim a manhã irrompa feito uma bofetada na cara.
             Ao chegar dezembro o asfalto em Sertãozinho arde. Por mais que se varra, esfregue, lave calçada, meio-fio, asfalto, nada se desencarde. A terra vermelha impregna ruas e almas. Elen segue pela Sebastião Sampaio, em direção à Santa Casa; deve buscar a confirmação, mesmo que já carregue a densidade da resposta pressentida no ventre. "Parabéns, a senhorita já está de oito semanas", o jovem doutor anuncia a sentença antiga do sapo. E a legião de vozes adentra os corredores do hospital pelo teto, pelas frestas das janelas, 'essazinha não presta' 'nasceu de árvore torta' 'mãe, por que me abandonou?' 'biscate sem futuro' 'tua vida é uma casa caiada, aceite os escombros'; e a enfermeira pergunta, "moça, quer um copo d'água?", "obrigada, tô com pressa", e no passo célere, mas sem rumo, o mormaço distorce as casas de comércio, a sirene duma ambulância ondula presságios, um vulto esbarra em seu ombro, 'por onde volto, se nunca houve o caminho?', e ela sobe até a Barão do Rio Branco, encontra um banco na Praça 21 de Abril, quando as doze badaladas expandem as ondas sonoras do sol a pino, mas seu desamparo é todo mudez estática, como nos sonhos em que as pernas não se mexem e o grito não lhe sai."

VAGALUMES SEM NOITE: contos entre sombra e luz (EDITORA PENALUX, 2016)

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Florir no escuro: novo livro de poesia de Chico Lopes



Florir no escuro (Penalux, 2016), segundo livro de poesia do escritor, poeta e artista plástico Chico Lopes, não só oferece ao leitor uma continuidade temática e formal de seu ótimo Caderno Provinciano (Patuá, 2013), como também amplia seu recorte lírico a partir de alguns outros temas e símbolos verificados em suas narrativas ou, ainda, nas pinturas do artista, além de experimentar outras formas de construção poética. 

Dividido em quatro seções, as duas primeiras ("Verme Ardente" e "Horas a fio") reiteram a poética de seu livro de estreia na poesia. Quanto à forma, há o primor na construção do verso, segundo a máxima de Verlaine de que "poesia, antes de mais, é música", embora o ritmo não se prenda, tal como propuseram os simbolistas, a nenhuma amarra de métrica regular. Por isso mesmo, o soneto "Ilimitado", por exemplo, como o próprio título já sugere, tem uma forma não-ortodoxa em métrica e rima. Contudo, a cadência de cada poema comunga com o conteúdo (como se espera num bom poema), destacando-se a recorrência duma espécie de canto de imprecação, uma "cropologia sacra", que se constrói justamente na dialética entre o sagrado e o profano: "Estátuas se erigem do excremento,/miasmas se convertem no etéreo,/ a música quer ser limpa e o sopro erra/entre nesgas de céu e sete palmos de terra"(...)"Um quê de Paraíso comicha e espicaça/se revolve inquieto, cúpido roedor./É um verme ardente. Quer chamar-se amor". 

Como foi apontado por Cleber Pacheco na orelha do livro, Florir no escuro tem uma familiaridade, sobretudo nessas duas primeiras partes, com as Flores do Mal baudelaireanas e também com a escatologia do ímpar Augusto dos Anjos. Porém, tenho que destacar ainda o diálogo com um dos maiores poetas brasileiros, o genial Cruz e Sousa. A intertextualidade se deslinda na leitura comparada com os poemas "A torre de ouro", "A flor do diabo" e "A ironia dos vermes", do nosso maior simbolista. "A torre" de Chico Lopes erige-se como o lugar do isolamento de quem "escalou o impossível/e foi isolar-se na torre/para melhor entender", mas a luz que brilha lá em cima é tão excessiva e inumana que dissolve o enunciador "num clarão estupefato". Em afinidade com o poeta Cisne Negro, o alheamento, a incomunicabilidade, a incompreensão sugerem-se, nos versos de Lopes, por símbolos etéreos como a névoa, a fumaça, "As coisas vagas, ausentes", "Uma angústia de querer/o possível de outros mundos".

Ouso dizer que a poética de Chico Lopes comporta uma consciência cristã atormentada que, a par da falsidade dos símbolos religiosos institucionalizados, busca superar essa degradação rearranjando tais símbolos pela via profana e escatológica. Medo, assombração, culpa, solidão e desassossego — que, no fim das contas da condição humana, reduzem-se às questões hiperbólicas e complementares de amor e morte — são enfrentados pelo poeta afundando-se ainda mais naqueles sentimentos movediços, numa espécie de redenção às avessas. Desse movimento brota a ironia, um estandarte de quem se sabe perdedor antes mesmo de começar a batalha.

Há muito o que dizer sobre os poemas das duas primeiras seções, o que exigiria um trabalho de maior fôlego, provavelmente mais completo se relacionado à produção narrativa do mestre Chico Lopes. Mas quero me ater sucintamente às duas últimas seções do livro, que são relativa novidade em sua poesia. 

Por um lado, apresenta o novo em formas que o autor ainda não tinha explorado, como a (convencionalmente chamada) prosa poética nas duas partes, "Asas" e "Memórias", e a versificação popular, quero dizer, a prevalência das redondilhas, cujo ritmo está entranhado em nossa cultura ibérica, no poema "Felicidade Antiga", que está dividido em 12 segmentos e domina o conteúdo da última seção, "Memórias". 

Por outro lado, quem conhece a obra do autor, não só na literatura quanto na pintura, está inteirado da importância do pássaro, que figura em sua poética até as raias do mito. O enunciador se transfigura em pássaro, tanto no encolhimento ("olhinhos de sono, crista tombada, conforto de asas fechadas") quanto na sina de aves noturnas sem descanso, que "estão condenadas a não poder pousar e sua maldição é voar por toda a eternidade. Rarefeitas, têm saudade obscura da terra e o chão é o paraíso a que aspiram". Os passarinhos de Chico Lopes não são apenas belos, ternos, delicados, trigueiros, singelos ou símbolos de liberdade; sim, eles são também isso, mas, sobretudo, o enunciador afirma: "Faço-os arbitrários, ferindo noções exatas de ornitologia, porque os quero líricos e inclassificáveis, como eu". Ou seja, esses pássaros são a matéria poética de que o eu-lírico quer se fazer, mesmo que sejam espécimes hostis, aterrorizantes e imprevisíveis, tais como os de Hitchcock.

Quanto à última parte, o autor trabalhou um tema muito caro a todo poeta que se preze, de românticos a modernistas: a nostalgia da infância. Existe nessas memórias uma visão um pouco mais otimista que, embora não seja ingênua, pois sabe que a lembrança das alegrias e a reconstrução do passado são movimentos ilusórios, consegue assim mesmo transfigurar poeticamente a vida bela (em plena melancolia) numa pequena cidade do interior em meados do século passado. Tenho a impressão de que o menino recriado no poema "Felicidade antiga" é a chave pra compreensão duma dimensão essencial na prosa do autor. Aflora nesse caçula uma sensibilidade, um desejo de expressão, um veio passional que não se adequa ao modelo masculino padrão e aos imperativos de um entorno social acachapante. Numa realidade interiorana de machões estereotipados, pros quais o gesto prenhe de carinho é interdito e a sensibilidade artística podada nos primeiros anos, cabe ao menino frágil, mas resiliente, tão só florir no escuro, seja pela fantasia na sala escura do cinema, seja pelo recolhimento em que os primeiros versos surgem.

Mas vou parando por aqui. Pretendo ler alguns poemas do Chico com mais acuidade em breve. Ao leitor que teve a paciência de me acompanhar, só tenho a dizer que Florir no escuro é leitura recomendadíssima.