sexta-feira, 30 de setembro de 2016

LUZ QUE ANDA SEM RUMO | Alexandre de Oliveira Martins

              Com Vagalumes sem noite / contos entre sombra e luz, Artur Ribeiro Cruz debuta no que classicamente se denomina gênero narrativo. Poeta de sofisticação atestada por seu “Semanário do Corpo” (2015), obra também de estreia no gênero lírico, Cruz mostra-se igualmente exímio no manejo preciso da contação de histórias a partir de combinação ímpar entre ética, técnica, temática e estética. Embora técnica e estética estejam quase sempre amalgamadas na construção literária, Artur não deixa dúvidas de que é da primeira que emerge a segunda. Por sua vez, as opções temáticas, desenvolvendo dilemas éticos profundos, acabam por definir o ritmo, a cadência e as opções morfológicas e sintáticas realizadas pelo autor no encadeamento e progressão dos elementos narrativos, de maneira especial tempo, espaço e personagens.

            Não por outro motivo, os nove contos que compõem o livro apresentam, por exemplo, distintas e combinadas formas de grafar diálogos: entre aspas e no corpo do texto em “A última ceia”; com o clássico travessão em “Corcel afogueado, ou o périplo de Orosmindo”, “A procura” e “Tio Valdim”; discurso indireto livre mesclado com aspas em “Canção noturna” e “Notas de solidão”; alternância linha a linha entre narração e diálogo aspado no final de “Arquitetura de um voo” e principalmente com linha a linha de diálogos aspados em “O retorno do cavaleiro andante”; por fim, recurso do uso do itálico em “Um sofista”. Cada opção gráfica parece servir de maneira específica ao tema desenvolvido, gerando efeitos estéticos diferentes conforme o conto, mas definitivamente apropriado ao desenvolvimento de cada história. Esse procedimento parece mostrar-se presente nas mais diversas instâncias de análise e apreciação do texto de Artur.

            Os contos aparentam ter em suas facetas visíveis distintas, por exemplo, no caso específico da manifestação peculiar gráfica dos diálogos, o que se observa em sua face invisível, aquela do significado, não, por evidente, a do sentido somente vocábulo a vocábulo, mas a do efeito de sentido advindo da relação entre o tecido semiótico interno a cada conto e a função externa de uns com os outros, entre os nove apresentados, tornando-os, cada unidade, um signo completo e complexo, só percebido se em sua totalidade e se na ludicidade enredada por seus diversos elementos em diferentes camadas do plano da expressão e do conteúdo da obra. O nono conto ironiza essa suposta unidade, mas torna-se ele próprio a 'prova dos nove' de que o livro é um todo organizado, arquitetado.

            A técnica narrativa de Cruz é ainda percebida no controle esmerado, seja para mais ou para menos, tanto da extensão rítmica (fraseado, paragrafação, recursos de oralidade), quanto da modulação temática (variação delicada e cortante do assunto e da perspectiva) e da narração (controle do que o leitor deve ou não saber sobre o que se conta, uso da primeira ou terceira pessoas). Esses elementos, associados ao gran finale de cada conto — incluindo o nono conto, que em si é um gran finale para o livro —, conferem à obra um tom enxuto e exato, nos termos de Julio Cortázar, para quem o conto seria uma luta de boxe vencida por nocaute, diferentemente do romance, vencida por pontos. Os contos deste livro certamente nos nocauteiam. Mas ao modo de Muhammad Ali. Com sutileza, firmeza, intenção, precisão e poesia.
            Formado por sugestivos dois 'versos', sendo o segundo uma espécie de  indispensável aposto do primeiro, o título do livro, como de toda obra bem planejada, em si é uma síntese e metonímia de sua totalidade. De pronto, o primeiro 'verso' (“iluminado” pela grafia em caixa alta) instaura um oxímoro: vagalumes sem noite. O 'verso/aposto' seguinte (contos entre sombra e luz [e não entre luz e sombra]) completa a imagem paradoxal, como se algo (os pirilampos vaga-lumes?) se interpusessem à luz (sem noite), gerando um espaço real mas de transição onde justamente os contos se inseririam.

            Essa imagem advinda do título é decisiva para a fruição das histórias sombrias, mas repletas de luz poética, escritas por Cruz. Ao contrário da estratégia de Poe, Artur acha o tom soturno de seus contos não a partir da criação de suspense narrativo, como à Hitchcock, mas a partir de combinação de diferentes técnicas, especialmente a machadiana (ironia, refinamento, intertextualidade, diálogo com o leitor, mergulho introspectivo, entre outras) e a roseana (efeitos sintáticos, transubstanciação da oralidade, tom místico, ambientação simultaneamente interiorana e universal, entre outras), em constante comunicação com um estilo que se poderia neologizar de 'intercosmos', uma mescla da aguda visão sobre sua cidade natal, Sertãozinho (interior de São Paulo), com o mais cosmopolita olhar sobre a sociedade e o mundo.

            Outra comparação que se faria, imprecisa, por certo, é a de que a leitura de seus contos por vezes poderia literariamente fazer recordar parte da opção cinematográfica de Lars von Trier, com seu Dogville. Em seus contos, Cruz desnuda tanto o que há por trás de muita sombra quanto – e principalmente – o que há por trás de muita luz, ou do estritamente essencial das coisas. Em outros termos, similarmente ao reggae do grupo Ponto de Equilíbrio, Vagalumes sem noite nos recorda que "nem tudo que é negro remete a escravidão" e que "nem tudo que é preto remete ao medo não". Ou que o excesso de luz cega tanto quanto a escuridão, na máxima de Raduan Nassar. Mantido, portanto, o símile sugerido pelo título do livro, não é difícil vislumbrar o caráter positivo da escuridão em termos literais ou figurados. Literalmente quando se observa o que ocorre com os próprios vaga-lumes (insetos), que estão desaparecendo da natureza, entre outros fatores, pelo aumento da presença de luzes artificiais em áreas onde eles se localizam, fato que os impede de utilizar a própria luz para encontrar seu parceiro sexual, comprometendo assim sua espécie. Figuradamente quando as sombras possam ser compreendidas como redenção, a ver nos surpreendentes desfechos dos contos aqui expostos.

            Se Trier, no cinema, opta por um cenário invisível (sem paredes, janelas ou portas), permitindo que o espectador veja os coadjuvantes em seus afazeres longe do foco principal da ação, Cruz, embora pareça também optar por um olhar essencialista, fixa-se no palco principal da ação (e inclui paredes, janelas e portas), desfocando a lente, portanto, da “coxia, camarins e bastidores”, e acentuando os efeitos que as gradações de luz têm sobre o visto e o entrevisto exclusivamente no centro, numa espécie de releitura contemporânea estética-filosófica-existencial de preceitos barrocos. Como se, usando um farol poderoso, desejasse ver não [somente] o objeto iluminado pela luz, mas tudo aquilo eclipsado por esse mesmo objeto. Entretanto, ao contrário do pessimismo das também nove histórias da película Dogville, “Vagalumes sem noite”, ainda que também mostrando a desumanidade que emanaria da humanidade, compõe um quadro à brasileiríssimo e menos determinista da complexidade de viver, seja nas metrópoles, seja no interior do país, seja sozinho ou em grupo.

            Lembrando, pois, umas Fleurs du Mal em prosa, permeia — que o leitor não se iluda — uma melancolia sarcástica por todas as histórias de Vagalumes sem noite, amarradas por um fio isotópico do campo semântico eufórico das luzes (“afogueado”, em Corcel afogueado...; “arquitetura” e “voo”, em Arquitetura de um voo) ou disfórico das sombras (“ceia”, em Última ceia; “noturna”, em Canção noturna; “solidão”, em Notas da solidão), ou ainda — e sobretudo — uma mescla de ambos não só nos demais contos, como no desenvolvimento modulado entre euforia e disforia nas histórias mesmas cujos títulos sugerem apenas um caminho de leitura. Essa opção parece de certa forma repetir literariamente o próprio trajeto etimológico do vocábulo vaga-lume, identificado inicialmente em Portugal por caga-lume, em referência às glândulas luminescentes da parte traseira do inseto nomeado. Por pudor, trocou-se a letra C por V, gerando o significado de 'vagar', 'andar sem rumo'. Vaga-lume seria, assim, o mesmo que “luz que anda sem rumo” (e em plena luz do dia, no caso deste livro). Eis aí um outro traço que parece comum aos personagens das nove histórias aqui apresentadas: igualmente ao inseto, cujo tecido que emite a luz é ligado na traqueia e no cérebro, dando-lhe total controle sobre sua luz, os personagens deste livro, embora possam controlar a 'própria luz', perambulam sem rumo com sua inútil fosforescência diante da aparente claridade da vida, que os invisibiliza. Este livro não teme revolver a escatologia da luminosidade.

            O que há entre a sombra e a luz? Para a Física, no âmbito do princípio da propagação retilínea da luz, em um meio homogêneo e transparente, como o ar, a luz se propaga em linha reta, de modo que a formação de sombra (ausência de luz) e penumbra (região parcialmente iluminada), dá-se quando a luz é obstaculizada em seu caminho por um objeto opaco (todo objeto que não permite a propagação da luz através de si). Metaforicamente, as histórias de Vagalumes sem noite se interpõem nesse locus real mas fugaz, efêmero e contingente que dura o quanto durar a luz ou o quanto permanecer o objeto opaco que a bloqueia. Por extensão, é um livro cujas histórias, na expressão e no conteúdo, alternam-se não dogmaticamente entre a razão e a emoção, entre a poesia e a prosa, entre o clássico e a vanguarda, entre o local e o universal, entre o homicídio e o suicídio, entre a musicalidade e a literalidade, entre a modernidade e a pós-modernidade, entre Apolo e Dionísio, entre a sanidade e a loucura, entre a submissão e a desobediência, entre a infância e a maturidade, entre a ingenuidade e a maldade, entre a solidão e a multidão, entre o ideal e o real, entre a verdade e o sofisma, entre a caridade e a crueldade. Todos sempre em relação dialética.

            O último conto, por seu caráter metalinguístico e irônico, parece revelar o grau de consciência que Cruz tem de sua literatura e da literatura. Aparentemente deslocado do tom dos demais, este derradeiro insinua ser uma reflexão irônica sobre o procedimento construtivo dos anteriores, essencialmente baseados na procura de uma alta elaboração da linguagem e de um aproveitamento máximo dos elementos narrativos tradicionais. É também uma gargalhada metalinguística sobre os rumos pós-modernos da literatura e sua “desconstrução do gênero, dissolução do enredo, busca que não progride”. Na dúvida, Cruz mostra-se competente tanto em uma quanto em outra estética, como bem provam suas nove belíssimas histórias.

            E por isso seu livro merece ser saudado com grande entusiasmo.


            Salve, salve, Artur!


Alexandre de Oliveira Martins é graduado e Mestre em Letras pela UNESP. Graduado em Relações Internacionais e Integração pela UNILA. Doutorando do Programa em Integração da América Latina – Prolam, pela USP.

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