Enquanto eles não chegam, deixo a você, leitor, um trecho do primeiro conto do livro, "A última ceia":
"Ela
sobe os três degraus até a sala, tira os saltos pra pisar o assoalho, o caminho
à esquerda, desvia a cabeça da prateleira de mão-francesa, onde descansa o
rádio valvulado, o bichano ronrona entre seus tornozelos, enfim a porta de
ripas, o quarto, o quarto onde não dormirá, onde ela abre os olhos e vê que a
aurora se anuncia discretamente pela veneziana. Mais uma vez ela buscará a
pasta na última gaveta da cômoda, a coleção de papéis-de-carta, os traços
singelos de mocinhas ao piano, vestidos rodados, passarinhos soerguendo
cartazes enrodilhados ao amor, jardins em que pequerruchos corados, bochechas
fofas, abraçam-se, uma vida em tons pastéis. Ah, mas o verdadeiro rosto entrevisto
no espelho da cômoda é tão só uma cópia ordinária de madona barroca,
mais-escuro-menos-claro, o rímel a escorrer visgo dos olhos de amêndoas, os
cachos negros insinuando pelas têmporas arabescos, o pescoço longilíneo, esfumado
em laivos violáceos como mármore antigo; um busto de ruínas. Ela desvia o olhar
da própria imagem. Toda fuga é provisória. Nunca mais o quarto pra dormir,
nunca mais, por isso ela busca um dos papelotes na bolsa, estica uma carreira
sobre a folha da pasta, alcança um canudinho de mil cruzados pra que enfim a manhã
irrompa feito uma bofetada na cara.
Ao chegar dezembro
o asfalto em Sertãozinho arde. Por mais que se varra, esfregue, lave calçada,
meio-fio, asfalto, nada se desencarde. A terra vermelha impregna ruas e almas. Elen
segue pela Sebastião Sampaio, em direção à Santa Casa; deve buscar a confirmação,
mesmo que já carregue a densidade da resposta pressentida no ventre.
"Parabéns, a senhorita já está de oito semanas", o jovem doutor anuncia
a sentença antiga do sapo. E a legião de vozes adentra os corredores do
hospital pelo teto, pelas frestas das janelas, 'essazinha não presta' 'nasceu
de árvore torta' 'mãe, por que me abandonou?' 'biscate sem futuro' 'tua vida é
uma casa caiada, aceite os escombros'; e a enfermeira pergunta, "moça,
quer um copo d'água?", "obrigada, tô com pressa", e no passo
célere, mas sem rumo, o mormaço distorce as casas de comércio, a sirene duma
ambulância ondula presságios, um vulto esbarra em seu ombro, 'por onde volto,
se nunca houve o caminho?', e ela sobe até a Barão do Rio Branco, encontra um
banco na Praça 21 de Abril, quando as doze badaladas expandem as ondas sonoras do
sol a pino, mas seu desamparo é todo mudez estática, como nos sonhos em que as
pernas não se mexem e o grito não lhe sai."
VAGALUMES SEM NOITE: contos entre sombra e luz (EDITORA PENALUX, 2016)
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