quarta-feira, 14 de setembro de 2016

QUE ESTEJAS ARMADO | Katiuce Lopes Justino


       Um livro de contos não é uma coletânea. Está longe de ser. Mas, no caso de Vagalumes sem noite, é mais que um constructo arquitetado, é, pois, organicamente tecido como "projeto-projétil", que lança a necessária pólvora da incerteza sobre a condição humana já em seu primeiro estampido, com "A última ceia" e vem recolher a cápsula vazia, espécie de Tao, como na visão de Lao Tsé, em "Um sofista". O vazio cínico de estar nu propositalmente diante da plateia hipócrita. Sintomas de uma racionalidade extrema.

Por outro lado, o da emoção pungente, a memória involuntária daquela cidadezinha qualquer não é apenas uma fotografia na parede, é a própria quarta parede, permeável ao olhar obsceno do diretor / autor: ali está a miséria das interdições sem razão outra que a circunscrição abafada de um quadrilátero cultural do interior de São Paulo. Tal indigência é contrabalanceada literariamente pela riqueza de nuanças que lhe confere o narrador. Este, embora imbuído do cheiro e do gosto locais, é um sem-limites herege, necessário, ímpio, despudorado, mas cuja poesia batiza, expurga, canoniza.

Com influências literárias marcadas por regionalismos de outras gentes e de outros sertões, seu estilo encontra a brecha da inovação na tratativa de costumes tipicamente urbanos, ou seja, aquilo que no ambiente natural rude costuma ser fartura, imensidão e imponência, no horizonte destes vaga-lumes é “a mesa com a toalha vinílica replicando, às dezenas, uma natureza-morta falsa e tropical”.

Quanto à progressão temática, do ponto de vista dos diversos narradores, que se alternam em primeiras e terceiras pessoas, é recorrente a figuração de uma espécie de exilado que, ao recriar o passado, passa por certa formação, lembrando aqui a sensação trazida pelo Bildungsroman – o romance de aprendizagem cunhado na Alemanha.

E é nesse ponto alto que em “Um sofista” o narrador multiplica as máscaras e fala diretamente a seu público, esfacelando em graus ficcionais as diversas camadas com que pode contar um farsante, um prosador ou mesmo um... professor!

Que não vá o leitor enganado de receber desses “quadros interiores” impressões leves em cores tênues da paisagem bucólica de uma Sertãozinho passada a limpo pelo crivo da consciência estético-literária. Se abrires este livro de contos, que estejas armado. Mas se venceres a batalha, verás a iluminação obscura do espírito, na maioria das vezes invisível no clarão cotidiano, que é também uma espécie de vaga-lume triste no tempestuoso palco das relações humanas.

Katiuce Lopes Justino
doutora em teoria literária pela Unesp

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