Um livro de contos não é uma coletânea. Está longe de ser. Mas, no caso de Vagalumes sem noite, é mais que um constructo arquitetado, é, pois, organicamente tecido como "projeto-projétil", que lança a necessária pólvora da incerteza sobre a condição humana já em seu primeiro estampido, com "A última ceia" e vem recolher a cápsula vazia, espécie de Tao, como na visão de Lao Tsé, em "Um sofista". O vazio cínico de estar nu propositalmente diante da plateia hipócrita. Sintomas de uma racionalidade extrema.
Por
outro lado, o da emoção pungente, a memória involuntária daquela cidadezinha
qualquer não é apenas uma fotografia na parede, é a própria quarta parede,
permeável ao olhar obsceno do diretor / autor: ali está a miséria das
interdições sem razão outra que a circunscrição abafada de um quadrilátero
cultural do interior de São Paulo. Tal indigência é contrabalanceada literariamente
pela riqueza de nuanças que lhe confere o narrador. Este, embora imbuído do
cheiro e do gosto locais, é um sem-limites herege, necessário, ímpio,
despudorado, mas cuja poesia batiza, expurga, canoniza.
Com
influências literárias marcadas por regionalismos de outras gentes e de outros
sertões, seu estilo encontra a brecha da inovação na tratativa de costumes
tipicamente urbanos, ou seja, aquilo que no ambiente natural rude costuma ser fartura,
imensidão e imponência, no horizonte destes vaga-lumes é “a mesa com a toalha
vinílica replicando, às dezenas, uma natureza-morta falsa e tropical”.
Quanto
à progressão temática, do ponto de vista dos diversos narradores, que se
alternam em primeiras e terceiras pessoas, é recorrente a figuração de uma
espécie de exilado que, ao recriar o passado, passa por certa formação,
lembrando aqui a sensação trazida pelo Bildungsroman
– o romance de aprendizagem cunhado na Alemanha.
E é nesse ponto alto que em “Um sofista” o
narrador multiplica as máscaras e fala diretamente a seu público, esfacelando
em graus ficcionais as diversas camadas com que pode contar um farsante, um
prosador ou mesmo um... professor!
Que não vá o leitor enganado de receber
desses “quadros interiores” impressões leves em cores tênues da paisagem
bucólica de uma Sertãozinho passada a limpo pelo crivo da consciência
estético-literária. Se abrires este livro de contos, que estejas armado. Mas se
venceres a batalha, verás a
iluminação obscura do espírito, na maioria das vezes invisível no clarão
cotidiano, que é também uma espécie de vaga-lume triste no tempestuoso palco
das relações humanas.
doutora
em teoria literária pela Unesp
Nenhum comentário:
Postar um comentário