domingo, 30 de março de 2008

quadrinha da gata











Minha gata estressada
Tem olhar bola de gude
Quando olha meio de lado
Falo: "Felícia, be good"

  • Imagens: óleos sobre tela de Aldemir Martins - Gato (1982); Gato (1975)

sexta-feira, 28 de março de 2008

bichos da terra II

Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?
(Camões)


Ô tatu bola, por que
tu se enrola agora se
já passou a hora
de se entocar?

Esconde-se onde?
redondo ontem
girou pra longe
do seu lugar

lá na panela
nela ferveu
cozeu pinguela
até não mais

carne quebra-dente
doente na pança
pra tarde vingança
ainda que quente

Foi tatu e não
deixou tu de ser
tatu na fuga e
fogo na gamela
e mesmo na goela.
  • foto: espetáculo do Cirque du Soleil em São Paulo

quinta-feira, 27 de março de 2008

bichos da terra I

as Estrelas e o Fado sempre fero,
com meu perpétuo dano se recreiam,
mostrando-se potentes e indignados
contra um corpo terreno,
bicho da terra vil e tão pequeno.

(Camões)

se você fosse uma minhoca
em brejo qualquer de encontrar
de barro úmido e pastoso seu
tudo, seu mundo, escorregando
túneis imprecisos, sem pressa.

se você fosse uma minhoca
caminho de anéis encarnados aqui
e ali minhocando destino
de osso lavrado em desatino
desdentado de geofagia.

se você fosse uma minhoca
genealogia geral de unigenitores, terrígeno gerador de indiferentes
semelhanças, gerações perpétuas
de individualidade genérica.



se você for uma minhoca
termina
onde nunca deixou de ser
começo
além de pó,
nada conhece
enterrada em vida, nunca
terá da morte
sentença.

fotos: instalação de Eduardo Frota (2001)

quarta-feira, 26 de março de 2008

Companhia Os Vigaristas

Em boa hora me chegou o convite para participar de um recém-nascido grupo de teatro, fruto do empenho de um também novo amigo, Samir Landin. Foi por intermédio do companheiro de trabalho (além de amigo e provocador) Alexandre Martins que acabei me envolvendo nos planos d'Os Vigaristas. Agora a quadrilha está realmente formada e empenhada no primeiro crime de montar uma esquete para o Festival Curta Teatro, a ser realizado em abril em São José do Rio Preto. Do grupo já participava meu ex-aluno Daniel Carvalho, um cara que sempre demonstrou energia e disposição para ações culturais.
A esquete tem texto do Samir e se intitula Monólogo de Dois. Uma situação corriqueira, dois sujeitos esperando num ponto de ônibus, é o mote para uma rápida e ácida investigação sobre a (im)possibilidade de comunicação na realidade urbana. A violência e a banalização da vida representadas hiperbolicamente tendem a provocar o riso tenso na medida em que se toma consciência da degradação das relações humanas nessa realidade.
Apesar do pouco tempo para ensaio, tendo em vista os compromissos de trabalho dos integrantes, esse projeto despretensioso tem sido levado avante com dois ingredientes essenciais: vontade e prazer.




domingo, 2 de março de 2008

A jagunçagem no mercado: a propósito da minissérie Grande Sertão: veredas

Nem tinha eu a idade do Miguilim quando foi exibida a minissérie Grande Sertão: veredas, em 1985, para comemorar os 20 anos da Rede Globo. Por anos ouvi comentários sobre esse marco da tv brasileira, uma empreitada ambiciosa de Walter Avancini e Walter Durst de transportar o sertão-mundo de Rosa aos limites do meio televisivo. Assim como o compadre Quelemen sobre a vida de Riobaldo, eu só sabia da minissérie de ouvir contar, e fiquei esperando o lançamento em dvd, caminho natural dessas produções globais. A expectativa se concentrou em 2006, ano do cinqüentenário de publicação do romance. Nonada. O ano se passou, lançaram-se edições comemorativas, o Museu da Língua Portuguesa fez uma bela mostra, críticos aproveitaram a oportunidade para publicar trabalhos, e nada da minissérie. Dá para se desconfiar qual seja um dos motivos. Já são conhecidas as batalhas com as herdeiras da obra do escritor mineiro pelos direitos. Então é possível figurar idéia dos entraves colocados pelas filhas de Rosa.

Tarde fui saber que a minissérie tinha sido exibida no Canal Futura. Daí, já imaginei: alguém gravou, digitalizou e deve estar tirando uns trocados com a venda clandestina. Não deu outra. Procurei na net e encontrei ofertas do produto, os 25 capítulos em 6 dvds. Engraçado que a encomenda teve de atravessar o sertão para chegar até mim; o fornecedor foi um rapaz lá da Bahia cujo nome bem poderia estar na lista dos personagens rosianos. Justamente essa forma marginal de obter produtos culturais me leva aqui a algumas considerações intrigantes sobre os descaminhos do mercado e da distribuição de bens culturais.

Quem é o provável público consumidor de uma minissérie como Grande Sertão: Veredas? Que se perdoe a generalização, mas se trata de um punhadinho de elite letrada, acadêmicos, estudantes de letras e cinema, um ou outro saudosista... Mesmo limitado, o mercado existe; tanto é que edições em dvd de outras minisséries de notável qualidade como Hoje é dia de Maria e Os Maias, do Luiz Fernando Carvalho, estão esgotadas. Porém, quando não se disponibiliza a obra pelos meios legais da indústria cultural, o que se observa, cada dia com mais força e articulação por conta do próprio desenvolvimento tecnológico, é o fenômeno que vou nomear “jagunçagem no mercado” (ideal para o contexto). O jagunço-internauta da Bahia gravou a minissérie e converteu o material para dvd; encontrei sua oferta numa vereda do sertão sem limites da internet. Agora, ao informar meus amigos que disponho do material, muitos se animaram a compensar o gasto que tive com a encomenda para que lhes empreste os discos, que serão copiados em seus gravadores de dvd. Como eu e meu bando estamos fazendo, muitos outros espalhados por aí devem também estar. E, assim, vamos nós disparando uns tiros contra o exército do mercado oficial.

Esse é apenas um exemplo pontual e modestíssimo perto das transformações que a jovem jagunçagem internáutica tem provocado na indústria. Contudo, a sutileza que se destaca no exemplo é o fato de serem os jagunços à procura da minissérie Grande Sertão, em sua maioria, professores, intelectuais, formadores de opinião, gente que muitas vezes, “no meio da tragagem de guerra”, busca refletir sobre a relação entre os bens do espírito e o valor de troca. Só concluo aqui, sem gastar muita munição, o que já sabemos: quem quer as benesses do espírito proporcionadas por obras de alta qualidade estética, tem que dar uma de Riobaldo e clamar pelo diabo.

Aproveitando o ensejo, cabe aqui comentar o último pé de guerra envolvendo a obra do nosso Guimarães Rosa. O estopim foi a edição de fevereiro da revista Bravo!, que, numa boa matéria de Mariana Delfini, publicou trechos de um diário inédito do escritor contendo suas anotações durante a II Guerra. Revelaram-se alguns detalhes da atuação de Rosa e sua esposa Aracy para tirar judeus da Alemanha durante o período. Era de se esperar que o conteúdo atraísse a atenção das igrejinhas acadêmicas que reivindicam para si o credo rosiano. Na seção de cartas da revista de março, apareceram declarações do pessoal da UFMG, que teve acesso ao diário na década de 1990. A Editora Nova Fronteira, por sua vez, declarou não ter os direitos da obra e que a decisão de publicá-lo cabe exclusivamente aos herdeiros. Como era de se esperar, as herdeiras Agnes e Vilma mostraram mais uma vez seu espírito “senhorial oligárquico” a respeito da obra do pai, afirmando indignação com a Bravo! por ter publicado os trechos inéditos sem o consentimento da família. Disseram ainda estar respeitando a vontade do pai, motivo pelo qual o diário não tinha sido publicado até hoje. As irmãs concluíram que, ainda que considerem a possibilidade de publicação, tendo em vista a importância histórica e literária do diário, vão podar os trechos que revelam a intimidade de Rosa, “em respeito à sua memória e imagem”. A coisa não parou por aí: dia 14/02 a Bravo! promoveu um debate em parceria com o Centro da Cultura Judaica, do qual participaram a professora Walnice Nogueira Galvão e os jornalistas René Decol e André Nigri. Segundo se relata na revista, as discussões sobre o futuro do diário pegaram fogo. Pelo visto, essa travessia vai dar campo pra muito chumbo ainda.