segunda-feira, 30 de junho de 2008

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Lira Sertanezina

Como cana nasci e cresci no sertão pequeno
cercado de cana por todos os lados.
Aprendi que o início foi a praça e a igreja
depois dum fim que fora café. A fé e a terra
que se dedicou a uma santa: nasceu
Sertãozinho, crescido na cana.

E pra Sertãozinho crescer, a cana
foi fugindo em distância da praça e da igreja,
cedendo seu sangue, a terra vermelha,
pra gente que trazia sonho de longe: crescer
tal qual cana cresce na califórnia brasileira.

Sertãozinho, querendo ser grande
Mas no fim tão pequeno. Meu Sertão
Tão zinho, pra mim você foi e você é
os canaviais das andanças de moleque…

As folhas da cana que me vincavam cortes ardidos;
o corte do podão sofrido do bóia-fria, que parou de cortar
com a chegada da máquina que não se corta.
Os gomos da cana que eu admirava de tão bem torneados e tão matemáticos;
o trabalho dos engenheiros, dos metalúrgicos, do meu amigo Zé, torneiro mecânico,
pra manter rodando dia e noite as usinas.
A casca dura descascada no dente pra sugar
de cada gomo o açúcar e depois cuspir o bagaço;
os dentes precisos das engrenagens, a energia, as turbinas,
as moendas, as caldeiras, o caldo grosso.
Quanto açúcar, calor e ferro, cristal e aço!

Meu Sertão, Sertãozinho
Só quem conviveu anos com vinhaça
Sabe o que é ser também garapão.
Meu Sertãozinho, Sertão
Só quem respirou anos de fuligem
Sabe o que é ter cana queimando na alma.

Alma de safras e entressafras

Alma entorpecida de álcool,
da euforia de produzir álcool:
política do álcool, pró-álcool, carro a álcool
crise do álcool, febre do álcool…
É tanto álcool, meu Deus, que o tonel transborda.

E paz encontrava em olhar a cana
de cima do velho morrão.
Olhar praquela colcha verde de leves relevos
bordada de fios marrom-vermelhos.
Gigante. Como eu quis ser moleque gigante
pra rolar sobre toda aquela esperança viva e macia.
Meu ser, tão zinho, ser tão.

Mas Sertãozinho,
menos esperança que dinheiro:
açúcar e álcool:
doce euforia
dos italianos usineiros;
das famílias médias italianas o sustento,
dos -ati, -eti, -oti, -ato, -eto, -oto,
dos -agi, -ali, -ani, -eli, -esi, -ini, -oli, -oni
e de tantos outros sobrenomes;
sobrevivência de retirantes do
interior de Minas e da Bahia,
que, em sua maioria, viram
o sonho do ouro verde
se esfriar na bóia-fria
E pra aquecer a lida
sobra o calor e a memória fria
do calor de outros sertões.
Calor e clamor.

Meu Sertãozinho, contudo, não
É o clamor de vidas severinas.
É apenas meu sertão pequenino,
aquele das lembranças de menino.

Por isso, quando me perguntam:
O que você é?
Sertanejo?
Sertaneiro?
Sertanense?
Eu digo,
Sou sertanezino.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

pérolas aos porcos

Lá pelos idos de 1998, quando ainda morava em Sertãozinho, estava numa tarde a ler o evangelho de Mateus quando parei no versículo dum discurso de Jesus em que se encontram essas palavras: “Não deis aos cães as coisas santas, nem lanceis aos porcos as vossas pérolas, para que não as pisem com os pés e, voltando-se, vos estraçalhem”. Fiquei vidrado na imagem dos porcos e das pérolas e, por motivos que não se explicam, comecei a esboçar uns versos que dialogaram com o “Autopsicografia” de Pessoa. O poeminha, meio manco, ficou assim:

Os porcos bem sabem o que
fazer com as pérolas. Eu

sinceramente não o sei,
mas sei que não vou chafurdar.

Vivo a fazer de versos um colar
para nunca me caber no pescoço.

Moço, quando você vai aceitar
que viver assim é um triplo desgosto?

Fingir o que sente e também
senti-lo pra ser não mais que vintém,

vitrine das jóias de porcos,
seu malfadado artesão do mau gosto!


Alguns anos depois, talvez 2002, vasculhando trabalhos de tradução de poesia, tive a surpresa de encontrar no site do Augusto de Campos uma transcriação de um poema de e. e. cummings que tem o mesmo trecho bíblico das pérolas e dos porcos como intertexto. A surpresa serviu para me colocar no devido lugar, ao constatar serem os trabalhos desses dois poetas que tanto admiro bem mais sofisticados que meu poemeto. A seguir, coloco a versão do Augusto de Campos e seus comentários sobre seu processo criativo, além do poema original:



"Pérolas para Cummings" Translation

The poem "pérolas para cummings" (English: pearls for cummings) was written in homage to E. E. Cummings' centenary in 1994. Its language is Portuguese. In the original setting the image of a pearl replaces the letters "o" and (in the last line) the letters "r" and/or "u". Converted into simple types (with an "o" instead of a pearl) it reads:

quem
o
tivo

olev
o
uavi

verj
o
gand

opér
o
lasp

arap
o
ocos

Portuguese: (in conventional form): "Que motivo o levou a viver jogando pérolas para porcos (para poucos)?"

English: "For what reason you passed your life throwing pearls before swine [for the few]?" In Portuguese, the word "porcos" means "swine", and the word "poucos", "the few", so that the changing of just one letter or "pearl" allows the shifting of meaning.

—Augusto de Campos

domingo, 6 de abril de 2008

Contrinatório

a raiz
denuncia
água e terra
fatídicas
medidas

este chão
por um triz
não é via
nem de regra
ou facção

ali se faz
sentida
imperatriz
a guria
Alice mas

ninguém nega
com razão
a extinta
flor-de-lis
que ela entrega

só não quis
serventia
da estrita
devoção
de um país

que dá bom-dia
co’a mão em merda
crônica
pra quem diz
alegria, alegria

terça-feira, 1 de abril de 2008

Invocação

Mote:

Em viagem pro Ceilão
Conheci a musa antiga
Que me rachou a moringa
Com um pau de macarrão

Voltas:

Desde então perdi o prumo,
Minha nau indo sem rumo,
E, sem mais razão, doidinho,
Dou um pulo n’água rindo:

Ai, Tágide sem censura
Vem aqui me dar um banho,
Qu’esta vida cá está suja
Da pureza mui de antanho.

Salga já este corte aberto,
Ô musa, louca varrida.
Canta, rebola e me atiça,
Mas ao fim me bate forte.

domingo, 30 de março de 2008

quadrinha da gata











Minha gata estressada
Tem olhar bola de gude
Quando olha meio de lado
Falo: "Felícia, be good"

  • Imagens: óleos sobre tela de Aldemir Martins - Gato (1982); Gato (1975)

sexta-feira, 28 de março de 2008

bichos da terra II

Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?
(Camões)


Ô tatu bola, por que
tu se enrola agora se
já passou a hora
de se entocar?

Esconde-se onde?
redondo ontem
girou pra longe
do seu lugar

lá na panela
nela ferveu
cozeu pinguela
até não mais

carne quebra-dente
doente na pança
pra tarde vingança
ainda que quente

Foi tatu e não
deixou tu de ser
tatu na fuga e
fogo na gamela
e mesmo na goela.
  • foto: espetáculo do Cirque du Soleil em São Paulo

quinta-feira, 27 de março de 2008

bichos da terra I

as Estrelas e o Fado sempre fero,
com meu perpétuo dano se recreiam,
mostrando-se potentes e indignados
contra um corpo terreno,
bicho da terra vil e tão pequeno.

(Camões)

se você fosse uma minhoca
em brejo qualquer de encontrar
de barro úmido e pastoso seu
tudo, seu mundo, escorregando
túneis imprecisos, sem pressa.

se você fosse uma minhoca
caminho de anéis encarnados aqui
e ali minhocando destino
de osso lavrado em desatino
desdentado de geofagia.

se você fosse uma minhoca
genealogia geral de unigenitores, terrígeno gerador de indiferentes
semelhanças, gerações perpétuas
de individualidade genérica.



se você for uma minhoca
termina
onde nunca deixou de ser
começo
além de pó,
nada conhece
enterrada em vida, nunca
terá da morte
sentença.

fotos: instalação de Eduardo Frota (2001)

quarta-feira, 26 de março de 2008

Companhia Os Vigaristas

Em boa hora me chegou o convite para participar de um recém-nascido grupo de teatro, fruto do empenho de um também novo amigo, Samir Landin. Foi por intermédio do companheiro de trabalho (além de amigo e provocador) Alexandre Martins que acabei me envolvendo nos planos d'Os Vigaristas. Agora a quadrilha está realmente formada e empenhada no primeiro crime de montar uma esquete para o Festival Curta Teatro, a ser realizado em abril em São José do Rio Preto. Do grupo já participava meu ex-aluno Daniel Carvalho, um cara que sempre demonstrou energia e disposição para ações culturais.
A esquete tem texto do Samir e se intitula Monólogo de Dois. Uma situação corriqueira, dois sujeitos esperando num ponto de ônibus, é o mote para uma rápida e ácida investigação sobre a (im)possibilidade de comunicação na realidade urbana. A violência e a banalização da vida representadas hiperbolicamente tendem a provocar o riso tenso na medida em que se toma consciência da degradação das relações humanas nessa realidade.
Apesar do pouco tempo para ensaio, tendo em vista os compromissos de trabalho dos integrantes, esse projeto despretensioso tem sido levado avante com dois ingredientes essenciais: vontade e prazer.




domingo, 2 de março de 2008

A jagunçagem no mercado: a propósito da minissérie Grande Sertão: veredas

Nem tinha eu a idade do Miguilim quando foi exibida a minissérie Grande Sertão: veredas, em 1985, para comemorar os 20 anos da Rede Globo. Por anos ouvi comentários sobre esse marco da tv brasileira, uma empreitada ambiciosa de Walter Avancini e Walter Durst de transportar o sertão-mundo de Rosa aos limites do meio televisivo. Assim como o compadre Quelemen sobre a vida de Riobaldo, eu só sabia da minissérie de ouvir contar, e fiquei esperando o lançamento em dvd, caminho natural dessas produções globais. A expectativa se concentrou em 2006, ano do cinqüentenário de publicação do romance. Nonada. O ano se passou, lançaram-se edições comemorativas, o Museu da Língua Portuguesa fez uma bela mostra, críticos aproveitaram a oportunidade para publicar trabalhos, e nada da minissérie. Dá para se desconfiar qual seja um dos motivos. Já são conhecidas as batalhas com as herdeiras da obra do escritor mineiro pelos direitos. Então é possível figurar idéia dos entraves colocados pelas filhas de Rosa.

Tarde fui saber que a minissérie tinha sido exibida no Canal Futura. Daí, já imaginei: alguém gravou, digitalizou e deve estar tirando uns trocados com a venda clandestina. Não deu outra. Procurei na net e encontrei ofertas do produto, os 25 capítulos em 6 dvds. Engraçado que a encomenda teve de atravessar o sertão para chegar até mim; o fornecedor foi um rapaz lá da Bahia cujo nome bem poderia estar na lista dos personagens rosianos. Justamente essa forma marginal de obter produtos culturais me leva aqui a algumas considerações intrigantes sobre os descaminhos do mercado e da distribuição de bens culturais.

Quem é o provável público consumidor de uma minissérie como Grande Sertão: Veredas? Que se perdoe a generalização, mas se trata de um punhadinho de elite letrada, acadêmicos, estudantes de letras e cinema, um ou outro saudosista... Mesmo limitado, o mercado existe; tanto é que edições em dvd de outras minisséries de notável qualidade como Hoje é dia de Maria e Os Maias, do Luiz Fernando Carvalho, estão esgotadas. Porém, quando não se disponibiliza a obra pelos meios legais da indústria cultural, o que se observa, cada dia com mais força e articulação por conta do próprio desenvolvimento tecnológico, é o fenômeno que vou nomear “jagunçagem no mercado” (ideal para o contexto). O jagunço-internauta da Bahia gravou a minissérie e converteu o material para dvd; encontrei sua oferta numa vereda do sertão sem limites da internet. Agora, ao informar meus amigos que disponho do material, muitos se animaram a compensar o gasto que tive com a encomenda para que lhes empreste os discos, que serão copiados em seus gravadores de dvd. Como eu e meu bando estamos fazendo, muitos outros espalhados por aí devem também estar. E, assim, vamos nós disparando uns tiros contra o exército do mercado oficial.

Esse é apenas um exemplo pontual e modestíssimo perto das transformações que a jovem jagunçagem internáutica tem provocado na indústria. Contudo, a sutileza que se destaca no exemplo é o fato de serem os jagunços à procura da minissérie Grande Sertão, em sua maioria, professores, intelectuais, formadores de opinião, gente que muitas vezes, “no meio da tragagem de guerra”, busca refletir sobre a relação entre os bens do espírito e o valor de troca. Só concluo aqui, sem gastar muita munição, o que já sabemos: quem quer as benesses do espírito proporcionadas por obras de alta qualidade estética, tem que dar uma de Riobaldo e clamar pelo diabo.

Aproveitando o ensejo, cabe aqui comentar o último pé de guerra envolvendo a obra do nosso Guimarães Rosa. O estopim foi a edição de fevereiro da revista Bravo!, que, numa boa matéria de Mariana Delfini, publicou trechos de um diário inédito do escritor contendo suas anotações durante a II Guerra. Revelaram-se alguns detalhes da atuação de Rosa e sua esposa Aracy para tirar judeus da Alemanha durante o período. Era de se esperar que o conteúdo atraísse a atenção das igrejinhas acadêmicas que reivindicam para si o credo rosiano. Na seção de cartas da revista de março, apareceram declarações do pessoal da UFMG, que teve acesso ao diário na década de 1990. A Editora Nova Fronteira, por sua vez, declarou não ter os direitos da obra e que a decisão de publicá-lo cabe exclusivamente aos herdeiros. Como era de se esperar, as herdeiras Agnes e Vilma mostraram mais uma vez seu espírito “senhorial oligárquico” a respeito da obra do pai, afirmando indignação com a Bravo! por ter publicado os trechos inéditos sem o consentimento da família. Disseram ainda estar respeitando a vontade do pai, motivo pelo qual o diário não tinha sido publicado até hoje. As irmãs concluíram que, ainda que considerem a possibilidade de publicação, tendo em vista a importância histórica e literária do diário, vão podar os trechos que revelam a intimidade de Rosa, “em respeito à sua memória e imagem”. A coisa não parou por aí: dia 14/02 a Bravo! promoveu um debate em parceria com o Centro da Cultura Judaica, do qual participaram a professora Walnice Nogueira Galvão e os jornalistas René Decol e André Nigri. Segundo se relata na revista, as discussões sobre o futuro do diário pegaram fogo. Pelo visto, essa travessia vai dar campo pra muito chumbo ainda.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Medo

Medo. O medo
me divide me mascara me
pressiona à persona
E vêm várias no único páreo
a concorrer na mesma raia a
que prêmio? a corrida:
ela acabada, e O medo
ando em casa de espelhos
velhos novos eu que são
eles e eu, José no Egito
de um mesmo pai: O Medo.
bastardo, tu vasas os olhos
porque há que se crescer ler fazer
há que se comer vestir sorrir ir ir
há que se levar trazer trepar com muitas
muitos são os há que... E o medo. O
E só o pronto plâncton recobrindo
O mar fundo profundo improvável
mas todos alga — superfície — parasitas
da luz que gerou Lúcifer
porém o mar e o medo
a luz cambiante ante o antes e o depois
movendo Ismos, graals de gelo
na mesa em chamas do tempo, minha cadeira
a durar um facho azul-amarelo da luz:
uz
E não adianta (nem atrasa)
a lira a gira o tédio, viver num prédio
casto justo santo, viver no campo
sujo ogro imundo, viver no mundo
nem mesmo chamar-se Raimundo
se o fundo-profundo prova
de que resta em infinita sobra
Medo. O medo

maio de 2002

sábado, 9 de fevereiro de 2008

A autópsia de um pombo

Meu primo Adriel odeia pombos. “Não passam de ratos com asas”, define ele. De fato, por mais empatia que se tenha por animais, esses bandos de pombos pululando na cidade raramente despertam sentimentos amistosos.

Para começar, pombo arrulha. Veja que palavra feia: arrulha. E esta tem tudo a ver com o sussurro insistente e funesto emitido pelo bicho. Tem pássaro que canta ou gorjeia. E o pombo, o que faz? Arrulha!

Outra coisa é a empáfia e ousadia desses animais. Nas praças e calçadões, eles estufam o peito e ficam passeando como se fossem gente, mais do que isso, como donos do pedaço. Faça o teste: um pombo só se assusta de verdade e foge num voo rasante se você ameaçá-lo com um chute ou, numa atitude mais extrema, sair correndo atrás dele. Obviamente, quem passará por ridículo numa situação dessas é você, e o pombo vai manter sua dignidade intacta, pousando em outro canto para continuar a vida de ave desocupada. Repare, ainda, que essa ave prefere muito mais andar que voar. E anda dando aqueles pinotes para a frente com a cabeça, como se quisesse ter braços para se equilibrar melhor. Quando voa, é para dar um susto; o animal adora tirar uma fina do pedestre distraído.

E quem mora em prédio invadido por pombo sabe bem como é difícil a convivência. Adriel me contou quantas horas de sono perdeu com um casal de pombinhos que se aninhou no buraco do ar condicionado do quarto dele. Cinco da manhã e os malditos trocam arrulhos apaixonados ou se exaltam num rrruuu rrrruuu infernal. É besteira tentar espantá-los. Eles são perseverantes e em menos de 5 min estão de volta.

É difícil admitir, mas os pombos são verdadeiros animais cosmopolitas. Eles se adaptam sem problema à vida nas cidades. Eles não se sentem incomodados de dividir conosco o espaço citadino. Então, cada uma de nós sente o orgulho ferido de ver um ser considerado tão insignificante lidando tão à vontade com a loucura da vida urbana. O cotidiano pode ser massacrante e ameaçador, e os pombos parecem debochar da condição a que estamos submetidos, pois tiram de letra a vida numa realidade que muitas vezes (ou sempre) é absurda.

Toda essa divagação sobre pombos me veio à caixola ao lembrar das histórias cômicas do Adriel e também depois de conhecer um poema do crítico de cultura, tradutor e poeta Nelson Ascher. O belo texto, transcrito a seguir, é Elegia, publicado em Ponta da língua, de 1983.

Elegia

Primeiro, fatos: uma
fuselagem de penas
há pouco destroçada
no asfalto, por assim

dizer, indiferente
às mesmas, antes brancas,
que, se já não contestam
a hegemonia cinza

do acaso ao fim da tarde
exceto pela mancha
vermelho-suja, ou seja,
o voo em negativo

de vísceras explícitas,
sugerem, todavia, o
que, sem dúvida,
fora um pombo. Nada trágico:

um episódio apenas
na sequência total de
fenômenos anônimos
e além disso complexos

demais para a cabeça
de um pássaro, aliás,
somente uma cloaca
volante, ameaçando a

tranquilidade asséptica
dos pedestres. Contudo,
na reformulação de
seus componentes, algo,

anódino talvez, se
perdeu. — Mesmo o poema,
na melhor das hipóteses,
não passa de uma autópsia


Essa leitura para mim foi o salto, na verdade bem curto, entre o cômico e o trágico. O corpo de um pombo estraçalhado no asfalto é o clique para uma clarividência sobre a condição humana. Que importância tem o cadáver aberto e as “vísceras explícitas” de um animal que nunca pôde medir a complexidade de sua existência? A morte apenas selou o inescapável anonimato de um ser insignificante. Contudo, o pombo, como tudo aquilo que vive, atesta veementemente a incapacidade de conter vida. Diante dessa questão hiperbólica, a finitude, nós, homens e mulheres de uma sociedade moderna, em meio a incontáveis e cada vez mais velozes “fenômenos anônimos / e além disso complexos” descobrimos que o sentido da existência nos escapa fatal e invariavelmente como a própria vida. Um indivíduo só poderia fazer uma autópsia de sua existência, para vasculhar as vísceras de sua relação com o tempo e o espaço, e reconstruir o corpo completo de sua experiência, após a própria morte. Eis a angústia do impossível!

A constatação final em Elegia é de que o poema não passa de uma autópsia. De modo mais amplo, a arte é essa autópsia, que se reverte, contudo, em vida. A arte é uma angustiante autópsia existencial, a forma que busca ser a soma de todos os momentos, a forma que investiga cada célula do corpo de nossas experiências. Como afirma Proust, por meio do narrador do Tempo Revisitado: “uma obra de arte é o único meio de recuperar o tempo perdido”.

Meu primo Adriel ainda odeia pombos. A maioria das pessoas não gosta deles ou os ignora. Mas mesmo a insignificância desses animais pode transformar-se em poesia, o resgate do algo anódino que talvez se perdeu.

domingo, 27 de janeiro de 2008

Cuidado com as figuras de linguagem

Domingo de manhã, pai e filho estão fazendo um passeio pelo bairro quando o menino avista um muro pichado:

ENTREGUE SEU CORAÇÃO PRA JESUS E SEU PULMÃO PRA SOUZA CRUZ

Intrigado, o garoto pergunta:

— Ô pai, quem é o Souza Cruz?

— É o da empresa de cigarro.

— Mas por que se eu entregar o coração pra Jesus eu tenho que entregar o pulmão pra esse tal de Souza Cruz?

— Não, não. Isso é uma frase sarcástica. O sentido é figurado. É uma ironia... É... Quer dizer, na verdade, é uma brincadeira sem graça de algum baderneiro que não respeita nem a propriedade dos outros nem coisas mais sérias ainda.

— Ah, acho que entendi... Se Jesus é dono do coração e Souza Cruz do pulmão, é uma ironia de baderneiro ficar brincando com essas coisas sérias, pai?

— Nada disso, tudo errado. Nem parece que você é um menino inteligente! Agora, chega de papo furado e aperte esse passo que você está andando muito devagar.

MORAL DA HISTÓRIA: Se for explicar algo para uma criança, cuidado com as figuras de linguagem. Ela poderá empregá-las bem melhor que você.

sábado, 26 de janeiro de 2008

Vida de cão também pode ser boa

Apoiado numa série de observações nos últimos meses, posso afirmar que o comportamento dos cachorros de rua é um grande revelador do espírito e do modo de vida de uma cidade. Não estou de brincadeira! As considerações a seguir se baseiam num profundo interesse despertado em mim por esse setor da sociedade, após um incidente no município de Icém, a 60 km de São José do Rio Preto, na divisa com Minas Gerais.
Ia pela primeira vez de carro à cidadezinha, onde leciono alguns dias da semana, e estava meio atrasado. Ao tomar uma das ruas principais num ponto em que passa em frente à praça da Igreja matriz, eis que vejo atravessar o caminho um baita cachorro, jogando uma pata na frente da outra num movimento que me pareceu uma técnica de andar poupando-se de qualquer esforço mais desgastante. O cachorrão continuou sua travessia, com seu olhar voltado para um ponto distante que não consegui identificar e, então, fui obrigado a reduzir até parar na cola do animal. O infeliz não se deu conta do perigo, nem mesmo percebeu sua inconveniência, porque ainda parou para coçar umas pulgas. Dei com a mão na buzina e o cão a ignorou. Quem percebi ter se importado com o barulho, na verdade, foi um grupo de cidadãos que estavam na porta da padaria ao lado. Me lançaram um olhar que dizia “quem é esse aí atrapalhando o sossego logo cedo?” Embaraçado, esperei o cachorro concluir seu caminho para depois continuar o meu.
Bem, esse foi apenas o primeiro incidente. Algumas semanas depois, fui à padaria numa aula-janela para comprar uns pães de queijo. Quem encontro novamente, dessa vez na calçada? O lazarento do cachorro, acompanhado de um amigo canino. Os dois estavam estendidos na calçada, tomando o sol da manhã, de tal modo que impediam a passagem. Nem pensei em reivindicar o meu direito de passar por ali. Dei a volta pela guia, para retornar à calçada mais a frente. A partir desse dia, comecei a dar relevância aos cachorros que habitam a área central de Icém.
Em primeiro lugar, notei que eles têm um status diferenciado. Recebem mimos dos tiozinhos sentados à porta dos botecos, cumprem uma rotina de visitação a estabelecimentos comerciais, vão e vêm sem ameaça de agressão, recebem ração num lugar fixo, enfim, eles conquistaram grau invejável de cidadania. Tendo em vista a rotina tranqüila e o alimento garantido, todos eles estão em bom peso e alguns chegam a estar obesos. Até assusta o tamanho de alguns!
Atentando-se a Rio Preto, uma cidade de porte médio, vemos que quando se encontra um cão de rua no centro, o que é meio difícil, o indivíduo é sempre esguio, geralmente mirrado, está sempre olhando de um lado a outro, tem um comportamento arisco, esquivo, porque sabe que a qualquer momento pode ter uma surpresa desagradável. Cachorro de rua, pra ser bicho solto em cidade grande, tem que ser malandro, fazer a correria pra ganhar o de cada dia. Muitas vezes fechar uma parceria de proteção e carinho com um morador de rua é essencial. E se vacilar, já era. Se esses cães soubessem a vida boa que seus companheiros têm em Icém...

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Aviso

Em muitas linhas deste blog, ficção e fatos se confundem. Se nem mesmo eu consigo às vezes separá-los, não aconselho ao meu caro e raro leitor o esforço dessa tarefa.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Testando o meio...

Esta é minha primeira incursão neste espaço que talvez seja o mais democrático para compartilhar impressões, idéias, textos engavetados, etc. Sem pretensão alguma, mesmo porque não sei até quando terei paciência ou disciplina para manter o blog atualizado, pretendo postar aqui textos que até então não tinham outro leitor que não fosse eu mesmo, ou um ou outro amigo. Então, aos amigos que se dispuserem a gastar um pouco do seu tempo com minhas banalidades, sejam bem-vindos!