terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

TIO VALDIM


         para Adriel Luis Gennaro
e para Paulo Sérgio da Cruz (in memoriam)





         — Quantos palitos de fósforo preciso juntar pro barco, tio Valdo?
         — Tem que contar por caixinha, moleque. Meio milheiro pra caravela. Se você juntar, prometo que faço uma bem da hora, no capricho.
         Não houve caravela. Durante anos nunca juntei os fósforos suficientes. E agora ia ao encontro de quem não podia mais cumprir a promessa. Segunda-feira, meados de novembro de 1998, meu irmão Mateus me ligou no meio da manhã. Acharam um corpo. Provavelmente do tio Valdo, falta confirmar. Meia hora depois, outra ligação, sim, o corpo do tio no pedaço de espuma que fazia de colchão no quartinho alugado. Duas horas de estrada e um turbilhão de lembranças me levariam de volta a Sertãozinho.
         Não tinha como não gostar do tio Valdo. Falava mole, um risinho no fim da frase. Cara de deboche ingênuo. Embora eu não soubesse explicar, percebia nele o gesto solto, de quem não se molda a expectativas. Uma liberdade incômoda pros adultos da família. Desde que me lembro, ignorou a vida séria que meu pai e meus tios rumaram. Todos eles, pobres remediados. E ao caçula coube a vida torta. Pícaro e bufão. Quando lhe falavam de tomar tento, agarrar trabalho de gente honesta, ele desatava gargalhada, revelando o oco liso dos molares.
         Uma foto carcomida era a única lembrança material que tinha do período em que ele cumpriu pena em Araraquara. Tio Valdo era nego-aço — mulato de cabelo sarará aloirado. O risinho esboçado no canto da boca eternizou-se na imagem maltratada por tempo e suor de minhas mãos. Ao fundo, os muros de concreto armado da prisão compunham com o céu cinzento e o uniforme azul esmaecido um clima melancólico, não fosse o sorriso e a estampa dum pêssego enorme no meu moletom.   
         Nunca soube exatamente o motivo da primeira cana. Quando falava do irmão desmiolado, minha mãe era toda censura terna. Tio Valdo sempre tinha dado mais trabalho que os outros. Só cabulava aulas. Tomava gosto por vadiagem. Aos doze anos, por aí, numa briga com moleques na beira do córrego Duas Pedras, acabou levando uma botinada na moleira que o deixou desacordado. Já no hospital, Valdim apenas voltou a si quando colocaram um chumaço de éter pra ele fungar. Da ambulância ao camburão, foi uma questão de poucos anos.


         Cumprida a pena, voltou pra Sertãozinho, e foi morar num quartinho na casa de meus bisavós. Primeira vez que vi imagem de mulher com as pernas arreganhadas foi na porta do quarto dele. Ali organizou um mosaico de pernas, bundas, peitos e bocas convidativas. Ao me flagrar um dia vidrado numa ruiva voluptuosa, ele perguntou se eu já tinha chupado um grelo. 
         — Quê que isso, tio?
         — Sabe não, pirralho? Dropes novo. De vários sabores. Um dia trago um pra você experimentar. Agora vai dar uma volta que o tio aqui vai esticar a carcaça.

          Fim de semana os primos se reuniam pra aproveitar o quintal ponteado de pés de fruta — manga, goiaba, jabuticaba, ameixa, limão, cajá-manga, ciriguela, sem falar da figueira-de-jardim, árvore de fruto proibido. A bisa impunha distância dos figos. Do quarto onde labutava as doenças da senilidade, ouvíamos os gritos do além, imprecando maldição a quem se aproximasse dos frutos insossos. Quão gostoso o sabor da ameaça. Não pelo gosto do figo, mas, hoje desconfio, pelo gosto do pecado original revisitado. Açodávamos, então, uma rebeldia ingênua, enredada por ameaças impraticáveis, mas instigantes ao rompimento do temor mítico que fertiliza a infância.      
         Tio Valdo estava sempre de passagem. Pra jogar uma água no corpo ou trocar o gás do isqueiro ou esvaziar a mochila no quarto. Mas sua presença não passava batida. Chegava fazendo arruaça, inventando apelido novo pra quem ele visse primeiro, depois dava um abraço de tamanduá na minha avó, que sofria de mal de chagas:
         — Amós...Jonas...Samuel...Valdo, tem pena da tua mãe! — confundia o nome dos filhos e o acerto vinha quando só o dele restava —  Meu coração não guenta.
         Diante daquela presença intrigante, como eu era o mais velho entre a meia dúzia de primos, me tocava puxar a potoca sobre o tio vida-torta. A primogenitura me dava mais autoridade na tentativa de explicar a rotina arrevesada do tio Valdim. Daí o estímulo pra forjar histórias, com as quais me envolvia a ponto de acreditar mesmo, trêmulo de excitação.
         — Sabia que o tio toma sopa temperada com maconha?
         Ficava imaginando a sopa preparada todas as noites por minha avó. Sempre o punhadinho de macarrão padre-nosso e algum legume boiando no caldo engrossado com extrato de tomate. Então os olhos matreiros do tio Valdo. E dedos serelepes salpicavam a ervinha do capeta por cima. Que gosto teria aquilo? Na sopa, por quê? De certo, tinha a ver com a canção de mosca e sopa, que ele cantava às vezes no meio do terreirão pra marcar o ritmo no gingado de capoeira. Jogava sozinho. E não queria ensinar pra gente.
         — Professor de rabo de arraia é a rua. Cês é tudo meninão de casa e igreja.

         Tio Valdim fez vida errada. Não é exemplo pra ninguém, relembrava o biso Dito ao perceber o clima de admiração. O que, de fato, ele fazia nenhum adulto nos contava, se é que sabiam. Então fabulávamos mais. Em roda, os moleques que nem tevê tinham em casa enredavam o herói Valdim em inverossímeis aventuras. Ele se correspondia com um tal de João Acácio, preso lá no Paraná, e, por conselho do mentor, tinha queimado fundo todas as pontas dos dedos. Pra aguentar a dor, tinha virado no gluglu um litro da branquinha Pignata. Agora, homem sem digitais. E na mochila não podia faltar uma lanterna de facho vermelho. Também conselho do correspondente. Essa história foi se costurando quando tio Valdim apareceu com as duas mãos enfaixadas, cambaleante, resmungando palavras de boca suja antes de se trancar no quarto.

         Numa quinta-feira à noite, já passava das dez, atendi uma ligação do tio Jonas; nem me cumprimentou e pediu pra falar com meu pai, 'quê? roubou um Verona no Alto do Ginásio?...ladrãozinho safado...bateu? não andou nem três quarteirões?...além de bandido, é burro...tá bom, to indo pra lá'.
         A partir dessa noite tio Valdo ganhou residência nova, a cadeia pública de Sertãozinho, que ficava apenas a alguns quarteirões da casa dos bisos. Fui uns pares de vezes visitá-lo com minha avó. Ali só ficavam os bandidos pé-de-chinelo   ladrões de galinha, bêbados encrenqueiros e outros quaisquer que ameaçassem, de leve, a ordem pública. Os casos mais complicados, homicídio, latrocínio, estupro, tráfico de remonta, iam pra presídios de maior respeito, na região.
         A cada visita, tio Valdo apresentava a galera toda. Me lembro do Graxa, tio do Cosme e Damião, moleques vizinhos de casa. Ele fazia tapetes e barcos de palito. Ensinou tudo o que sabia do ofício a meu tio. Graxa perguntava dos sobrinhos, pedia pra vigiar se não andavam com má companhia. Numa outra visita me deu um jogo de botão improvisado. Os jogadores eram pregos pintados de azul e vermelho, e a bola, uma biloca de gude. Um toque cada jogador. Até hoje me pergunto como eles arrumavam pregos e martelo na cadeia. O punhadinho de presos me fez sentir orgulho de ser sobrinho do "Marrom", goleiro dos bons nas peladas durante os banhos de sol.  Cheguei a acreditar, no exíguo tempo passado ali, que dava pra ser feliz na cadeia. Jogar bola e construir brinquedos sem a obrigação do trabalho. Um outro jardim da infância, talvez. Mas percebia que o sorriso de tio Valdo principiava a despetalar.
         Nesse período, se bem me lembro, a morte levou meus bisos. Sozinha no casarão, a vó arrastava amargura, o ar lhe faltava, e apegava-se às vozes dos locutores dos canais AM, especialmente um Leo Oliveira, que vertia em melodrama supostas cartas de ouvintes. Às vezes, nos fins de semana, Valdim aparecia no quintal. Tranquilo, calado e mais magro. Deixavam que saísse da cadeia. Ficava por lá um pouco, comia, pegava umas frutas, goiaba, acerola, ameixinha, pinha, e voltava.
         Ao concluir dois anos de pena, ele foi ajudar tio Jonas na oficina de funilaria e pintura, onde eu também estava trabalhando meio período. Com meus quinze anos, já passava da hora de trocar o ócio das tardes por uma atividade de moço responsável. Então tio Valdo virou meu companheiro; éramos os únicos moleques do barracão, embora ele já estivesse no meio dos trinta. Não carecia mais inventar histórias. Agora eu podia ser ouvinte exclusivo de fabulação.

         Era desastrado. Tio Valdo era um comédia. Certa feita, enquanto lixávamos um Monza, me contou que, pra comemorar o ano de maior, tinha arranjado um .32 velho e ido lá pros lados de Orlândia, curtir umas grutas famosas naquelas bandas. Cara e tipo manjados, dedo-duro na área, a polícia deu em cima. Escondido numa gruta, armou emboscada e enquadrou os canas, mas enrolou-se todo com a arma. Rodou por lá mesmo, depois transferido pra Ribeirão, finalmente pena em Araraquara. 
         Se o ferro não tivesse enrolado na minha camisa, eu tinha escapado.       
      — Mas ia matar, tio?
      Não, tá doido! — soltando a gargalhada banguela — Só ia dar um susto e zarpar.
         Confessou que sonhava um assalto grande pra arrumar a vida. Só o suficiente pra ir embora, sossegado. Comprar uma casinha caiçara. Dormir e acordar no barulho das ondas. Viver solto feito peixe em água sem fim. Surfista é que era homem livre e feliz. Fiquei apavorado. Se ele fizesse mesmo, seria eu cúmplice? Egoísta, torci pra ele continuar desastrado.
         E tio Valdo continuou na oficina. De vez em quando fazíamos umas traquinagens. Até tio Jonas entrava na onda. Inventaram de andar de bicicleta sentado de costas no guidão. Ficaram os dois uma tarde toda se exibindo. Outra vez, em friagem de junho, inventamos fazer fogueira. Tascar fogo nos jornais usados pra empapelar os carros na pintura e um monte de lixo da oficina. 
         — Aí, Dri, quer ver um negócio maluco? Joga thinner! Vai ver o fogaréu que faz.
         Mandei a lata inteira. Tremi de pavor com a explosão. Tio Jonas me rasgou verbo de bronca, e ele ficou rindo de canto, dizendo pra ser mais ligeiro na malandragem.
         Porém, com frequência crescente, tio Valdo firmava num silêncio que lhe negava a natureza. Lixava um carro inteiro sem falar uma palavra. E mais magro. Uma tossinha que persistia. Devia ser o pó da massa automotiva, o cheiro de thinner e tinta. Estava se alimentando? A vó sempre fazia o simples apetitoso. E dormindo direito? "Depois de cana, moleque, sujeito não dorme, não dorme não, até fechar os olhos de vez. Ainda mais quem virou garoto em cadeia".
         Então vieram as dores, mais fortes, os exames, a sentença: a maldita. Ex-presidiário e aidético. Parte da família cochichava castigo divino. Agora podiam rechear a maledicência com causa e efeito. Minha mãe e meus tios procuravam tratamento. Era uma tal zidovudina, vulgo AZT, e já havia projeto de lei pra distribuição de graça na rede pública. Prolongava a vida, mas exigia rotina regrada. Tio Valdim filtrava o converseiro com sarcasmo. E o Cazuza, que era um baita playboy, não tinha secado até morrer? Fazendo renascer a risada redonda, dizia até gostar da ideia de morrer logo.
         E quem não resistiu foi o coração de minha avó ao chagas. Valdo ficou sozinho no casarão que tinha abrigado três gerações. Logo demoliram tudo. Cada tijolo vendido. O quintal sobrou imenso, uma floresta de fantasmas. Um tio-avô tomou a frente das intenções de vender o terreno. Tio Valdim resistiu. Montou uma barraca, arrumou um fogareiro, e continuou por lá até que o afoito parente avulso jogasse a tralha no córrego ao fundo. Ele não podia ficar ali. Era um empecilho à herança. Resignou-se, por fim, a ir pro quartinho alugado pelos irmãos no alto do Alvorada. Pra ele, apenas um ponto de parada entre as idas e vindas ao engenho pra encher uma pet de cachaça. Tratamento não ortodoxo. Ouvi um médico falando à minha mãe que eram essas caminhadas que o mantinham vivo.
         Sem aviso aparecia em casa. Barba crescida, um fiapo de corpo. Os vizinhos estranhavam o mendigo a quem abríamos as portas. Tio Valdo queria só dormir um pouco. Eu arrumava minha cama pra ele, com carinho, e puxava ao lado um colchonete pra mim, donde velava a horinha rala de sono. Queria que ele descansasse mais. Dormisse dias seguidos. Que ficasse ali com a gente, abrigado da noite tamanha. Mas a inquietude não o abandonava, a fissura de seguir pra parte alguma, e tio Valdo partia, deixando no mormaço opaco o eco duma gargalhada.
Mudei-me de Sertãozinho pra estudar e trabalhar em cidade maior. Mergulhei no marasmo de papéis de praxe, fluxo de caixa e balancetes, vivendo austero do salário que mal pagava a faculdade e as contas básicas. Os dias de rotina sobreposta tendiam a transformar a figura de tio Valdo, antes tão definitiva como forma de sentir a dor do mundo, apenas num pálido enredo de infância e adolescência. A morte dele me trazia à consciência o sepultamento da fase em que a rejeição aos padrões não é rebeldia, mas uma busca ingênua de liberdade, uma liberdade perigosa, centelha que, a olhos domesticados, deve ser apagada, com sopros de sofrimento e vergonha, sob o risco de alimentar uma fogueira a derreter as fôrmas lineares que moldam a vil segurança da tal vida direita e honesta.
         Inundei o fusca de choro e ódio durante a viagem. Como eu podia ser tão covarde e abandonar tio Valdo? Como podia aceitar uma vida medíocre trancado num escritório? Fui pro velório municipal disposto a escancarar hipocrisias. Ah, se encontrasse ali algum dos malditos parentes que detratavam Valdim, o bandido, a ovelha desgarrada, o peco fruto da família... estava disposto a cuspir em caras, quebrar dentes, gritar sujidades no desvão duma coroa de flores.

         Todo meu ímpeto se esvaiu diante do caixão, o barquinho singelo, navegando entre as espumas de margaridas brancas. Barba feita, revelando um outro sorriso, um risinho sereno, como enseada que mantém o mar liso em sua semicircunferência. Aquele sorriso me dizia, com o siso terno da morte, 'Adriano, agora você pode juntar os palitos e fazer o barco sozinho'.