sábado, 25 de abril de 2020

O RETORNO DO CAVALEIRO ANDANTE


"A monareta tá pronta na oficina", o Zé da Magrela despachou aviso de cima da barra-circular, sem esbarrar velocidade, pedalando embalado, que a hora de abrir a bicicletaria depois do almoço passava, 'eita! dia de dobradinha em casa a gente enche o bucho e alarga a sesta'. Diguim, de cócoras na calçada, martelava uma lata de óleo com vidro de lâmpada queimada dentro, melhor não tinha pra deixar o cerol fininho que, só de dar relo em linha, cortava. Ouvindo de soslaio, sem levantar cabeça, e mantendo ritmo do martelo, tomado escondido na caixa de ferramentas, ele soltou a voz mal afinada, "já passo de lá, Zé". Tinha uma vergonha disfarçada da monareta azul 1973; era bicicleta doutra década. E a molecada agora andava era no modelo bicicross, bmx da monark, ou caloicross, a crozinha, que algum primeiro pai da vizinhança tinha comprado no carnê de prestações pra exibir o de melhor que podia dar ao filho, e acabou contaminando os desejos de moleques, cujos pais não podiam engolir o despeito dos outros, enfim, as crozinhas se multiplicavam no bairro assim como as dívidas, os bicos e os esforços pra não dever mais na praça.

Diguim ia até as últimas consequências pra defender a dignidade de sua 'bici de véio'; primeiro o argumento falado e cuspido, empréstimo ao pai, "essa é uma jet black, um clássico! paralamas e cobre-corrente cromada, garupeira e banco anatômico", quanto esforço pra decorar as qualidades! mas quando as gargalhadas ainda insistiam no 'bici de véio', ele chamava pro desafio, uma corrida em volta do quarteirão, que ainda não tinha asfalto, pra provar que trem novo não resolve o lado de ninguém. Então a prova que tinha de se dar era concreta, pelo que ele não poupava os gambitos e todo fôlego e toda estratégia, uma fechada de leve pra jogar o oponente em cima da kombi do Mirão, quando esta estava no ponto perto da esquina aguardando frete, ou até mesmo uma bicuda discreta de lado, quando as bicicletas emparelhadas — era bico e queda.

Diguim não se sentia no direito de amostrar vergonha, afinal a monareta era orgulho de primeira conquista de pai pra filho. Seu Jurandir tinha feito muita hora extra na panificadora Guidoni pra conseguir comprar a bicicleta de segunda mão, quase nova. Isso já fazia uns pares de anos, quando o filho era apenas um bebê, e o padeiro Jura, enquanto pedalava o presente muito antecipado, imaginava o menino crescido, montando aquela belezura e descobrindo o equilíbrio, sem rodinha, "meu filho não vai ser mole", tão logo figurando a calanga dominada pra rodar com prazer de menino. Posto, portanto, Diguim soubesse o valor de agradar o pai, nunca executou o desaforo ensaiado de pedir outra nova, quanto mais ao ouvir dia-sim-dia-não "meu filho, essa menina aí é companheira pra vida toda; é só cuidar". E zelo não faltava: a cada dois meses a monareta ia pra manutenção no carimbado Zé da Magrela, pra fins de lavar e engraxar a corrente, trocar um ou outro raio, tirar o jogo dos aros e regular os freios. Sem contar que toda sexta o garoto lavava e encerava a relíquia, além de não deixar passar a noite no sereno, sempre guardada num canto da sala, não facilitando também pra ladrãozinho que entrasse em quintal de madrugada. "Rodrigo, vem comer que já tá frio", o grito da mãe interrompeu o bate-que-bate tanto na lata quanto na caixola de recordar, 'não posso ser um ingrato', e lá foi devorar o arroz, feijão, angu e ovo com o apetite comum às consciências tranquilas.

"Ah, espia que esse breque tá tinindo, Diguim! É só triscar o manete, ó. E dá uma olhada cá no giro da roda; nada de jogo. Também fiz um agrado: limpa-raio de macarrãozinho colorido. Seu Jura, seu pai, vai fazer gosto!", Zé da Magrela exibia o orgulho do serviço na monareta virada de borco sobre um encerado, "pra não arranhar guidão e banco", e fazia questão de que o moleque guardasse relato detalhado pra contentar o cliente antigo e fiel.


Ao dobrar a esquina, ele avistou o rebu de bicis em frente a sua casa, o trio de amigos atinados em bando: o Pioio ensaiando empinada, roda da frente pra cima, o Nicão testando abrupto o freio da frente, pra cima co'a roda de trás, o Corneta deitando curvas num oito imaginário. Quando firmaram vista na aproximação dele, "aê, Diguim, chegaí!", "a gente tava t'esperando", "bora pra lagoa caçar". Dezembro de águas fartas, a também chamada Lagoa dos Cavalos de certo estava vertendo pelas beiradas pra regar brejos, tempo bom pra caçar rã, peixinho mato-grosso e cará de topete. Diguim constatou que a trupe já trazia mochila com a tralha nas costas, com estilingue, bolas-de-gude (tipo biloca miúda) e pedras-castelo bem escolhidas, sacolinha de mercado, cantil, um punhado de restos de farinha e grãos pra cevar. No susto, ele apressou buscar seus pertences, mas fugindo à escuta da mãe, que lavava roupa no tanque, com receio de que ela frustrasse o ensejo da aventura.

O sol estava de apertar os olhos, e a umidade do verão, chovera a noite toda, fazia da tarde um bafo quente sufocante. Eles saíram do Jardim Jamaica, atravessaram a Cohab 7, divisaram a antiga chaminé, no limite da cidade, e após cruzar o elevado da linha do trem, seguiram por um braço de trilha até a estrada da lagoa, que contornavam a fim de alcançar o ponto mais palatável das águas. Não estava fácil pedalar buscando a terra mais firme em meio às escamas de lama mole deixadas por caminhões. Se passassem ali há uns vinte dias, ainda seriam ladeados pelo mar de cana, mas o corte acontecera, então só se viam os desenhos curvilíneos recobertos de palha seca, onde rebrotaria a cana-soca. Diguim achou até bom não ter cana, pois não veria Pioio se comprazendo com matança das avoantes, aquelas tadinhas de arribação, que ele justificava matar pra comer, "minha mãe deixa igualzim carne de codorna", mas o gosto mesmo era testar mira no alvo vivo, acertando quantas possível, muita vez deixando várias agonizantes pra trás. O Corneta ia no embalo, pra provar destreza no estilingue, até acertar uma e ficar com dó, no que pedia pro Pioio buscar a caça ou pedia perdão pra Deus por tirar vida de criação inocente. Por isso Diguim sempre levava uma latinha vazia de massa-de-tomate pra ele e o Nicão brincarem tiro sobre um mourão de cerca enquanto Pioio tocava a malvadeza.

Mas nesse dia não tinha motivo pra parar, nenhum teiú na estrada que dispusesse rastro veloz de distração, nenhuma cana pra partir na coxa e sugar caldo. Àquela hora, ainda o tempo firme, no céu acima deles apenas uma ou outra nuvenzinha esgarçada, tímidas em oferecer qualquer tiquinho de sombra. As nuvens polpudas anunciavam-se num dos flancos do horizonte, coisa mais pro fim da tarde. Como de costume, eles amarravam a camiseta na cabeça, como réplicas de turbante, menos o Corneta, que tinha tanta vergonha dos peitos e mamilos salientes a ponto de nadar sem tirar camisa. Pioio sempre ia na frente, queria enxergar o que fosse de novo primeiro, sedento de gritar alardes mesmo sem mote — era do seu feitio sentir-se sobranceiro, no caminho e também sobre os demais, "ô Nicão, já foi visitar a dama do ferro-velho?", e ninguém via graça além dele, "melhor o rei da sucata que o pudim de pinga, né não?", continuava no deboche à frente. Os outros três revezavam posições, ora em par, ora em fila, ora o trio alinhado, sem disputar besteira da dianteira. O Nicão preferia seguir lento e constante, concentrado quieto, como mansa segurança do bando. Ele que morava só com o pai, cuidando todo dia de buscá-lo no bar, caindo de cachaça, homem perdido depois que a mulher fora embora com o dono dum desmanche de carros. O pai do Nicão tivera emprego cobiçado, era encarregado de eletricistas num setor da Zanini, onde conseguiu emprego aos catorze anos. Nunca teve cabeça pra investir o salário e, com a perda de mulher, a pinga acabou de lhe tirar tudo. Sem o emprego, passou a fazer bicos, puxando gatos de energia, instalando ventiladores, consertando chuveiros e outros serviços miúdos, cujo pagamento incerto ficava todo no bar e nas apostas de truco. O aluguel da casa vários meses atrasado, motivando uma ação de despejo, e o Nicão, arrimo de pai bêbado, começou a trabalhar no lava-jato do Nero a fim de, pelo menos, comprar comida e evitar a suspensão de energia e água em casa. Mas era uma quarta-feira, movimento fraco, só dois carros pra lavar, e o patrão disse que ele não precisava voltar depois do almoço. Só assim pro Nicão juntar-se ao quarteto novamente, e sua presença os deixava tranquilos, porque sabiam da força e habilidade que ele não exibia à toa. Era ele quem achava as melhores forquilhas, quem afinava a melhor vareta pras pipas, hábil no fio da faca e preciso na força justa.

Enfim avistaram a taboa recobrindo o brejo ao redor e, pelo meio das águas, as manchas dos aguapés, que já tomavam boa parte da lagoa. Foi hora de deitar as bicicletas numas touceiras pra explorar águas. O Pioio instigava alvissareiro a busca de rã-pimenta, gordotas vermelhas com tempero embutido por natureza, "de lamber os beiços", dizia estalando a língua. Mas carecia encontrar difíceis esconderijos, pois as bichinhas saíam mesmo à noite. Diguim não queria saber de rã. Horror ao ter visto uma sendo frita na panela de dona Izildrina, mãe do Pioio. A rã estrebuchava as patinhas como se ainda viva, sofrendo suplício. Ele não conseguiu experimentar a iguaria e teve que aguentar o riso desaforado de mãe e filho. A saber, então, que o interesse de Diguim nas águas era providenciar peixinhos. No penúltimo natal o pai lhe deu um aquário pequeno; mandou cortar os vidros, arrumou cola de silicone com uma colega encanador e comprou um motorzinho-bomba recondicionado. "Aquário não é coisa só de rico", meu filho. Contudo, o menino descobriu que não era tão fácil regular a água pros peixes. Também não sabia que ela deveria descansar, maturando uma colônia invisível, antes de receber as cores de nadadeiras e barbatanas. Pois quando trouxeram, afoitos, uma dúzia do mercado municipal de Ribeirão Preto — quatro paulistinhas, casal de colisa, tetra e molinésia, além dum cascudinho e um beijador, todos debatendo cores no saquinho plástico — tão só o rasteiro cascudo sobreviveu depois de apenas uma semana. A partir de então, seu Jura afirmou não rasgar mais dinheiro com bicho frágil, e se Diguim quisesse o aquário vivo, que fosse buscar peixinho em lagoa e açude. E ultimamente a caixa de vidro andava vazia, depois da morte dum cará que crescera além do esperado, tomando conta do espaço todo. Era o Caolho — o peixe tinha sobrevivido ao fungo do algodão-branco, mas acabou ficando sem um olho, apenas restando a concavidade cinzenta e oca. Caolho reinou absoluto e solitário até morrer de velhice. Mas Diguim pressentira o momento de repovoar o aquário, por isso o vidro já cheio, decorado com pedaço de tronco e uma lasca de pedra mineira achada entre as sobras duma construção.

Mas a Lagoa dos Cavalos não ofereceu peixe. Mesmo cevando os cantinhos corretos e arrumando com esmero a armadilha de cano PVC, Diguim não pegou nada. Pioio alardeou a primeira rã, "essa vale uma coxa de frango!", e o Corneta acudia curiosidade, levando rápido o saco de cebola onde guardar a caça. Nicão sentou-se ao pé duma árvore sangra d'água e tirou do embornal um toquinho roliço e o canivete, "vou talhar um apito". Diguim então mudou de posto, tentou de todo jeito onde sabia esconderijo de alevinos, e nada. Por fim decidiu,

"tô subindo lá pro Trianguim, no Engenho Central; alguém vai comigo?",
"cê endoidou, Diguim?",
"tudo isso é preguiça de pedalar meia horinha?",
"mas olha esse sol rachando", "e aqui tá recheado de rã! larga mão dessa bobeia de peixinho pra enfeite",
"podem ficar qu'eu vou sozinho".

Viu o Nicão ainda coçar a cabeça, meio indeciso, mas não enrolou espera. Pegou a monareta e rumou caminho.

Não tinha tino de chefia. Fosse mais paciente com traquejo de argumento, quem sabe oferecendo de agrado uns cromos mais raros do campeonato brasileiro, talvez tivesse companhia. Mas era bom pedalar sozinho e seguir por conta. O pneu sulcando tenaz a terra, o farfalhar dos canudinhos nos raios, a sensação de abrir um vácuo na tarde como se qualquer desejo pudesse ser submetido à força das pernas — a liberdade de girar uma decisão de repente, sem impedimentos. Não levava relógio, mas calculou que, mantido o ritmo, em hora e meia daria tempo de ir-e-voltar, com os peixinhos de alegria. Por isso apagou qualquer distração e fechou o foco na estrada, seguindo, fronte altiva, a linha vermelha.

Não tardou cruzar o mata-burro, marcando os limites do velho engenho, e avistar as três lagoas formadoras do Trianguim. Desceu a trilhazinha, ninguém nas redondezas, melhor assim, só tombar a bicicleta numa moita. Arrumou animado a armadilha, providenciou uma mistura de ceva, era hora de valer a tarde: quem sabe um punhado de matos-grossos, mas não descartaria também lambaris.

Quando se agachou na beira pra arrumar a tralha, o pavor! Do barranco oposto, saindo duma touceira e escorregando, sinuosa, um absurdo longilíneo, verde-escuro-mosqueado, uma sucuri. Na água barrenta, Diguim acompanhou, ainda sem reação, o movimento ágil, mas sutil, daquele bicho que diziam engolir bezerros e meninos. O pavor. Coração na boca, largou tudo pra trás, arrastou desembalado a monareta até chegar na estrada e saiu pedalando sem encostar bunda no selim.

Péssima ideia andar sozinho praqueles lados. Péssima hora pra decidir iniciativas. Sabia que a sucuri estava longe, ameaça remota, mas o pior era não ter com quem dividir desespero. Nem gargalhar de nervoso faria sentido. Sentiu-se um reles moleque medroso. Não era do feitio pra mato. Se tivesse apenas avoante e rã pra comer, apenas esses bichos tão disponíveis, ele morreria de fome. Não passava de um fraco. Uma farsa; sim, uma farsa sua habilidade com a bicicleta, pois de nada adiantava chegar primeiro se não cumprisse outra qualquer finalidade. De certo o Pioio perseguiria o animal; esse não tinha frouxidão, melindre, frescura — nascido caçador. O caminho de volta só fez pesar o sentimento de vergonha e derrota. Começou a escolher mal os desvãos na terra, patinando as rodas em sulcos lisos, vez ou outra tendo que apoiar um pé no barro pra não cair. Os companheiros de meia-viagem ainda estariam lá, aguardando? Como justificar o retorno de mãos vazias?

Chegou à Lagoa dos Cavalos, e tudo era um quase silêncio. Pensou em seguir na estrada sem esbarrar, mas, por desencargo, entrou pela trilha do matagal que conduzia ao ponto onde os amigos ficaram. Vislumbrou algum movimento: era o Corneta, com a bicicleta, na capoeira, desenhando curvas num oito imaginário. Não teve reação com a chegada de Diguim, "Corneta, cadê os dois?", mas ele surdo e calado, cabeça baixa, total absorto no oito imaginário. Então ele avistou figuras, debaixo da árvore sangra d'água. Acudiu com a monareta, aproximando-se, pra entender visão. Pioio estendido, a garganta aberta de fora a fora, num talho cirúrgico, o peito empapado de melaço vivo e rubro. Ao lado, Nicão de joelhos, o canivete ainda na mão, enquanto o olhar se erguia em súplica, "Diguim, ele não tinha o direito..."

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A risada que não quer calar

Fui ver Coringa ontem, na última sessão disponível, às 22h30, e depois de ter rodado quase 700 km entre Irati e Rio Preto. A expectativa estava acima do cansaço, visto que tenho acompanhado o material de divulgação (teasers, trailer, comparação com os demais coringas do cinema), alguns textos da crítica e comentários de amigos nas redes sociais, quer dizer, toda essa convergência de mídias que hoje se soma à experiência de fruição, ainda mais na indústria do cinema, que precisa justificar na bilheteria o alto custo de produção. Também me motivava a experiência daquele leitor adolescente que, em meados dos anos 90, leu uma das edições de Batman: a piada mortal (1988) do Alan Moore.
O que tenho a dizer? Primeiro que, depois de uma noite de sonhos intranquilos, estou ainda a digerir a obra enquanto tento corrigir redações e fechar o trabalho do terceiro bimestre. Esse Todd Phillips assumiu, como diretor, o próprio Joker: tirou da manga a carta de adaptações de quadrinhos que domina o cinema comercial há alguns anos para implodir os clichês da tendência. E a atuação de Joaquim Phoenix permanecerá entre as grandes, tal como a de Jack Nickolson n’O Iluminado ou a de Robert De Niro no Taxi Driver. Desde a primeira cena me tensionei na poltrona e fui sendo tomado por um misto de repulsa e identificação, empatia e aversão, de modo sobreposto e indiscernível em razão da complexidade de construção da personagem.
Ainda sob o impacto do filme, só tenho condições de partilhar algumas impressões:
1. Num plano mais imediato, a obra conseguiu sintetizar a decadência de um modelo social que lança no próprio indivíduo a responsabilidade em se adestrar para cumprir os padrões de produtividade naturalizados como sucesso e felicidade. É uma cuspida na cara dos arautos da “felicidade treinável”. Arthur Fleck é incapaz de se adequar, e o sistema não perdoa sua fragilidade. Ao tomar consciência disso, Fleck descobre, ironicamente, o seu mindset numa sociedade que esmaga o desajustado, o freak, o não produtivo do ponto de vista utilitário, ou mesmo a massa de desempregados e desassistidos. É o mindset da violência, da destruição, do caos.
2. Como representação da decadência de uma sociedade, não dá pra desviar das concepções de herói romanesco, no entrecruzamento entre o gênero literário romance e seu correspondente no audiovisual, isto é, o longa-metragem. Em um mundo degradado, o herói busca um valor autêntico: Arthur quer ser reconhecido como sujeito ─ não se trata apenas de fazer os outros rirem, como lhe foi doentiamente incutido na infância traumática, mas sim de ser ouvido e reconhecido de verdade. Desse modo, o herói buscará esse valor por meios também degradados a partir do momento que reconhece ser uma carta fora do baralho no jogo do sistema.
3. A linguagem da violência no filme não é (nem poderia ser) a épico-pasteurizada dos filmes de super-heróis das franquias Marvel/DC nem a hiperbólico-irônica a la Tarantino. Coringa é de uma violência crua e perturbadora que alguns chamariam equivocadamente de realista, já que o realismo não passa de construção. Mas chamar o filme de realista, como fizeram Lilian e meu cunhado Flavio (que estavam também desnorteados), explica a capacidade de traduzir o espírito da nossa época.
4. Outro tema (articulado aos comentários acima) que parece captar esse espírito de época, haja vista a quantidade de produções contemporâneas sobre ele, além do intenso debate que tem suscitado, é o seguinte: como lidar com as doenças mentais? O filme não idealiza a doença mental, pelo contrário, faz o espectador sentir o que é sofrer com isso. A aproximação entre a loucura e a arte, no filme, é cruel. Não há redenção, por mais que, em alguns momentos, haja uma sensação de revanche ─ esquemática, mas contundente ─ pela dor e marginalização para as quais os outros não dão a mínima ou, pior, sentem o prazer sádico em provocar.


São essas as ideias que consigo articular no momento, mas Coringa é daquele tipo de obra que oferece camadas e mais camadas quanto mais o espectador se debruça nela. É significativo, por exemplo, a história ser ambientada no início dos anos 80 (para ser mais preciso, o ano em que nasci, 1981), sem falar na escolha das músicas da trilha sonora e na qualidade da trilha original.
Enfim, é um filmaço. Acredito que não haverá outra vez no cinema uma risada tão perturbadora quanto a que Joaquim Phoenix descobriu em seu aparelho psicoafetivo.
Para os desavisados: não vá ao cinema buscando duas horas de entretenimento ou um escape aos problemas.

sábado, 10 de março de 2018

As telas de Van Gogh revisitadas na tela do cinema


Ao lado de "Sonhos" (1990), do Kurosawa, o filme "Com amor, Van Gogh" (Loving Vincent, 2017) é a mais bela homenagem cinematográfica ao pintor holandês. Nos sonhos, os oito episódios, em conjunto, emulam uma pincelada em espiral cujo centro de rotação é o episódio Corvos (com Scorcese no papel do pintor!). Quanto à animação, que levou vários prêmios e foi indicada ao Oscar, a proposta de Dorota Kobiela e Hugh Welchnan foi  mais didática do que recriadora, mas não deixa de ser ambiciosa: 125 pintores foram selecionados pra produzir, segundo as técnicas do artista, milhares de quadros a óleo que compõem as sequências narrativas do filme. E o resultado é de emocionar. As pinturas mais conhecidas de Van Gogh servem de fio condutor pra construção do enredo, e vão ganhando movimento pra revelar novos enquadramentos, angulações, outras incidências de luz, o fora de quadro, as possibilidades de ser e estar no mundo das pessoas com quem Vincent conviveu e que ele representou (e imortalizou) em suas telas: os Roulin, os Gachet, Adeline Ravoux...




A opção por reconstruir os últimos dias do pintor a partir de uma investigação empreendida pelo jovem e impetuoso Armand Roulin, com seu fulgurante paletó amarelo, também foi muito feliz. Evitou que a narrativa caísse num biografismo sem graça. Tenho apenas uma ressalva quanto ao roteiro. Embora o mergulho casual de Armand na busca pelas razões da morte de Van Gogh promova um diálogo interessante com o gênero policial, levando o jovem primeiramente a Paris e, finalmente, a Auvers, a entrevista final com o dr Paul Gachet, responsável pelo tratamento do pintor nas semanas antecedentes à morte, acaba fechando uma resposta para o suicídio, o que rasga o véu do mistério, do enigma, que tem forma na tela que ele estava pintando quando deu o tiro no estômago, "Campo de trigo com corvos".

O viés de causalidade do roteiro acaba creditando a morte a um sentimento de culpa de Van Gogh, instado pelo ressentimento de Gachet, o médico frustrado, que desejava ser pintor e copiava os quadros de seu paciente. Ao ser confrontado pelo ruivo colérico, que deixou às claras a covardia do doutor, Gachet teria contra-atacado enquadrando Vincent como um peso na vida do irmão Theo, cuja doença estaria se agravando devido à responsabilidade assumida de tutelar o mais velho, genial mas incapaz de se virar sozinho aos 37 anos de idade. Duas semanas após essa discussão, viria o fim trágico. Esse desenlace é muito limitador, empobrece as camadas da narrativa, achata o sentido da representação das tensões dialéticas entre vida e arte, amor e morte.

Mas o mais bonito mesmo é que o filme se realiza num diálogo profícuo entre pintura e cinema, multiplicando, em movimento, as inconfundíveis pinceladas e combinações de cores do grande artista, que em vida não conseguiu vender nenhuma (não conto aquela que o próprio Theo comprou escondido) de suas mais de 800 obras.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Corcel afogueado, ou o périplo de Orosmindo

     
Cavalo em uma paisagem, Franz Marc, 1910


Não vim de Rio do Prado por sonho de vida próspera, com a certeza de enricar, ou por deslumbre com as luzes do sul. Nada disso não. Vim por vir, a convite, e sem muito rebuliço. Minha irmã mais moça, Geralda, em Sertãozinho já pra mais de cinco anos, escreveu naquela carta: “Arreda o pé dessa terra sem muito futuro e vem cá. Aqui não abunda como contam, mas também não se carece como aí. Quem sabe não arruma moça honesta a formar família? Trabalho já tem arranjado com o Seu Chiarelli. Ele está precisado de alguém pra cuidar dum sítio, ordenhar punhadinho de vacas, tratar das galinhas, dos porcos, dos gansos; vigorar horta, gramagem e pomar. Aguardo resposta de urgência”.

Reparei no feitio do convite que era pra decisão de repente. A trabalho, qualquer que pesado, nunca me neguei. O dia cheio na labuta diminui o desejo das folganças muitas da carne, assim sempre me palavreava o pai. E mais pra mim ele reponteava o fraseado, por ver minha disposição de natureza pelo gozo de prazeres com mulher. Essa que sempre foi a maior tentação minha desde bem moleque. Não quis saber de iniciação barranqueira com animal de cria, não. Com doze anos fui decidido sozinho por mulher formada em casa de tolerância. Primeira vez fui objeto de caçoado, quando juntei bem umas pecúnias e fui procurar casa de Dona Abadia, que cuidava de punhado de mulher-dama. Não era nem noite, quando as sombras encompridam, cheguei lá, passei pela portinhola aberta pra rua, entrei pela porta da frente escancarada e vi duas moças pintando unha enquanto assistiam a novela. Falei com aquela voz mal firmada de rapazola, “quero escolher mulher pra satisfação”. As moças repararam em mim, olharam uma pra outra e quase se mijaram de rir. E então a parda de cabelo sarará se aprumou e disse: 

— Ô minino, não acha que veio cá muito cedo não? 

Ao que perdi um pouco da confiança e olhando pros pés descalços: 

— Já faz escuro... e se chego pra mais tarde em casa levo reio. 

Percebi que elas amoleceram. Pra mim, (me perdoe, senhorita, a pura protérvia) mulher, quando amolecida, é tal qual barro pra moldar, é só acertar a mão — isso foi trabalho cedo aprendido e o único a que me disponho a qualquer tempo sem obrigação. 

Mas sem perder o rumo da prosa, quando me apercebi, estava já de trouxa pronta. Família de nove filhos amaina a resistência de pai e mãe, sobretudo quando há carência de atividade rentosa ao redor e sobra vontade de viver ventura de cidade maior em região que dizem mais próspera. Mas o caroço de meus motivos não era figurar canaã, que não sou marionete de esperanças. Não sei por que nunca fui, embora criação justa cristã. Sou de falta de sossego. Careço movimento. Então parti com umas duas trocas de roupa, pote de paçoca salgada e o cantil de couro de bode, porque sede é o que mais incomoda quem toma rumo de estrada sem saber como e quando chega ao destino. Arranjei primeira carona num caminhão de granja até Teófilo Otoni; daí pra baixo, nos mais de mileduzentos quilômetros, nem vale a pena relato de perrengue, debaixo de sol refletido em ondas no asfalto e chuva de encharcar as ventas, mal dormindo em posto e praça, naquele janeiro de 1989, até arrastar o corpo moído e torrado pela Avenida Antonio Paschoal, passar pela rodoviária e subir anguloso até a Praça 21 de Abril, em Sertãozinho. Queria ver o miolo da cidade, pontear o centro de onde todo o resto irradia, a fim de ter medidas de comparação com as pontas, as arestas, que são os lugares onde real paira meu interesse em cidade que vai crescendo como raízes adventícias.

Busquei a carta de Geralda, bem guardada no embornal. Ali ela havia deixado número de telefone. Dei prosseguimento no arranjo de ficha e discagem de orelhão. Tocou muito seguido até eu ouvir voz de mulher, não de minha irmã; era d'outro tom e melodia. Dei referência de prontidão pra evitar susto ou conversa esbarrada. 

— Quem lhe fala é Orosmindo Abdias dos Reis, vindo a convite de minha irmã Geralda Jacira dos Reis, e já presente nessa comarca sertaneja. 

Ouvi eco de riso e resposta meiga de "espera um pouquinho, por favor, que vou chamar".



Não tardou pra logo pegar costume e formular compreensão da terra. O sítio referido por minha irmã era uma das propriedades do Chiarelli, que respondia por Júlio em primeiro nome. Peneirei os grãos da história familiar do meu então patrão. O pai fora pioneiro em moer cana, que vertia em açúcar e álcool, e disso sugou riqueza. Dos cinco filhos que herdaram a usina e as vastas terras, o primogênito, de nome Rodrigo, mas conhecido pelo diminutivo, era o mais atinado pra negócios. Abraçara um projeto do governo na crise do petróleo pra fundar o clã do álcool — isso me resenhou um velho ladino durante partida de bocha numa praça onde ia carpir informação. A usina se tornara rio de muitas veredas lucrativas, entre elas metalúrgica, distribuidora de bebidas e lojas de automóveis. A família barganhava nas altas esferas.

Júlio, meu patrão, era o rapa do tacho. Caçula mimado, mulherengo caprichoso que, em adolescente, lhe apetecia circular pelos bairros de pobre montado em carrão ou motocicleta pesada a fins de arrastar mocinhas de esperanças novelescas. Contava cabaços rompidos, diziam. Contudo, o que sobrava em espírito desbravador de mocinhas casadouras, faltava em rigor nos estudos e em paciência pras atividades de esmiuçar pensamento. Ademais, relatavam, não sei se por despeito, que seu fogo de macho era curto, era tão ligeiro quanto suas máquinas, que deixavam visgo de pneu e rastro de fumaça nas ruas e vielas.

A rotina de garanhão sem cerca foi, porém, esbarrada pela família. Meu informante, o Rubim, soldador aposentado também conhecido na bocha, jura que tal fim se deveu a um escândalo abortado, melhor dito, um aborto que se faria escândalo não fosse uma dinheirama pra convencer os pais da menina a emudecerem. O procedimento ocorrera em clínica de Ribeirão Preto, com médico de confiança dos Chiarelli. Em Sertãozinho não quedaram. Que o risco de resgatar a história devia ser apagado. A família mudou-se, arrematou Rubim num lance de bola vermelha, pra Pedro Juan Caballero, onde abriram portinha de comércio.

E Júlio firmou casamento repentino, aos 22 anos, depois de namoro estival, com a filha única do Dr. Sampaio, promotor público, parceiro de Rodriguinho Chiarelli em pilotagem de helicóptero e figurinha repetida nos jantares servidos pelo usineiro. À época, Lúcia, mas chamada Lucinha Sampaio, estava nas metades do curso de Odontologia, embora seu consultório já estivesse sendo montado em ótimo imóvel na rua Aprígio de Araújo.

A parte que me cabe nessa história tem princípio dez anos depois. Naquela carta de Geralda vislumbrava eu no Chiarelli um galegão gordo sitiante, que vivesse das benesses da pequena propriedade. Engano. O sítio era sede de fazenda. Me explico: Júlio recebera do pai terra vasta pra plantio de cana, a ser moída depois na usina familiar. Avesso ao trabalho de administrar a plantação, Júlio arrendou-a, mas manteve a sede sob seus cuidados por escolhidos motivos. Primeiro, conforme presumi, o de manter alguns animais de criação pro gosto e agrado de Lucinha, que se enlevava na beleza justa daqueles bichinhos. Ela fazia questão de, em presente, dispersar a quirela pras galinhas e angolas, escovar o pelo e trançar as crinas do mangalarga Reluz, tirar leite das holandesas Sula e Miranda, entre outros carinhos e caprichos; os gestos de Lúcia como que saíam de abscôndito relicário. Segundo, e este o motivo reinante, conhecido de todos, a presença da represa onde Júlio praticava seus esportes aquáticos, no jet-ski ou nos esquis aquáticos puxados por arretada lancha, quando levava piloto. Coube a minha serventia morar no sítio e deixá-lo nos conformes pra receber o casal aos finais de semana, vez ou outra acompanhados de visitas. O último caseiro havia voltado com esposa e dois meninos pra terra sua de nascença, perto de Ilhéus, por herança de um pedacinho de terra. 

Foi quando minha irmã fisgou a oportunidade e me pescou com a dita carta. Ela achava que Rio do Prado me desperdiçava. Me via como irmão destoante, mais solerte que os demais. Geralda cozinhava pros Chiarelli na casa da Nova Sertãozinho, bairro da gente endinheirada. Cuidava do café e do almoço, mas seu tempero, bolos e doces lhe valiam um pagamento razoável e podia sair às três da tarde. O marido era vigia de empresa e vivia rotina de coruja. Mas a dedicação e sina dela era mesmo com o menino Claiton, meu sobrinho de quatro anos, atacado de bronquite desde novinho. Decidi não interferir muito naquela rotina em que minha irmã, embora reclamasse, construíra seu orgulho de gente honesta que paga as contas e vive ordinários problemas. Comecei a plantar minhas próprias raízes e fui me espalhando onde elas pudessem alcançar.

Assim sucedeu que logo tomei jeito com as tarefas do sítio. As necessidades do pomar, a poda dos verdes, a limpeza e manutenção das dependências, o cuidado com os animais, seguindo certo as recomendações de Lucinha e do doutor veterinário, que eu fingia escuta de novidade, pra agradar. O lugar ficou um brinco, aprazível e vivo de brilhar os olhos. 

Fisguei mais ainda o rebrilho nos olhos de Lúcia na confiança ganhada junto ao mangalarga. Conquistei Reluz. O começo é observação de orelhas, narinas, cauda, patas, sobretudo olhos — aos quais nada escapa —, e, depois, a aproximação macia, mas confiante. De sobejo, torrões de açúcar, espigas escolhidas, cuidado sincero ofereci, e fui aceito. Embora de bom grado, pois queria dividir respeito com aquele cavalo imponente, a amizade do animal me valeu mesmo o encurtar distância com Lucinha. O patrão não tinha paciência pra desvelo de animais. Desconfio que até medo fosse, mesmo. Ficava ajustando motor de jestskis, depois se jogava na represa, indiferente ao fora d'água, montado no brinquedo, a gente ouvindo de longe os recortes de zunido. E a mulher, de primeiro demarcando espaço, séria patroa, foi atinando agudo interesse por meus costumes e saberes de campo. Como conhecia o tempo de cada planta? Tratava de cavalos em minha terra? Não achava que os bichos conseguem ver nossa alma? A cada pergunta, descobria nela uma vontade verdadeira de saber. Não estava motivada por educação, tédio, nem mesmo solidão, ou o disfarce era muito vero. Pois bem. Me dispus ao lídimo diálogo. Dizia tudo o que sabia sobre a terra e os animais de domesticação, rotina minha em família, buscando sempre a palavra precisa. Lúcia figurou-se a mim uma mulher que eu não desejava possuir, mas cuja beleza esguia e companhia plena me compraziam nos recônditos. Ao que antes não fosse razoável amizade com moça desejável, foi o sucedido. Amizade bem nutrida nos fins de semana, em remanso de conversas vivas e labor suave.

Durante semana, me ajustei pra conduzir qualquer circunstância; com tudo arrumado e seguindo ordenado fluxo, antes do sol a pino, o grosso do trabalho já concluído. Hora de tocar à cidade. Júlio me deixara uma mobilete pra emergências. E no depósito, galões de gasolina de sobra. De primeiro, quando asseverei desconhecimento de pilotagem, o patrão debochou:

— Nunca andou de bicicleta? A diferença é o motorzinho, que você controla aí na mão. Em todo caso, do chão não passa.

Avexado, mas sem figurar, eu disse que, ao carecer a serventia, montava. Apenas testei a bicha quando sozinho. Tombos bestas. Poeirão levantado. Porém em pouco prazo a bicicleta roncante domada. Dali adiante, o caminho pra cidade ficou questão de quarto de hora. Tomar sorvete de coco queimado no bairro São João, ver treino no campo do Alvorada, contemplar moças da patinação artística no Docão — tardes de plenas vontades. Inclusive arrumei o chamego de viúva-moça, a baiana Irene, que tocava um carrinho de cachorro-quente lá pelos começos da Av. Nossa Senhora Aparecida. Contudo, de costume, a parada era mesmo no Horto, nos limites da Cohab III. Ali uma praça repleta de mesinhas de carteado, dama e dominó; uma cancha de bocha; olor bom de eucalipto; um punhado de aposentados da cana fugindo das senhoras, dos netos, do vazio do ócio. Em meio a comprovantes de pagamento da aposentadoria e ao par de jornalecos citadinos, a prosa se preenchia do que corre à boca pequena. 

Adentrei o círculo aos poucos, pois vislumbrei que a gente de fora, mormente os do norte, padece bruta desconfiança. Ao flagrar paisagem, vi e ouvi conteúdo de gaiolas penduradas. Embora aperreado por aquelas asinhas presas, abri sorriso e perguntei, em vênia, quem sabia de canário da terra cantadorzinho pra negociar. Quando me replicaram se eu sabia lá alguma coisa de passarinho, puxei o gatilho das treinadas imitações de curió, igarassu, bigodinho, trinca-ferro, corrupião e canários vários. Plateia minha. Caminho aberto. 

Quem decidiu real admiração por mim foi o Rubim, cabelos já todos banhados em prata, sempre besuntados na brilhantina, bigode penteado, olhinhos pequenos e inquietos, voz rouca e incansável. Me dizia que eu era diferente dos outros paraíbas risca-faca. Que demonstrava estirpe instintiva. Que eu já estava até falando igual a paulista, mais esbarrado, carregando o erre. De minha vez, disfarçava o rancor pelo avilte aos que vinham de longe se gastar na cana, retinha apenas os elogios pra meus ganhos — sagaz de disfarces? 

Sim, como a moça já sabe, e redigo, foi o Rubim que me deu a conhecer o que o povo especulava sobre o patrão e a família Chiarelli.

— É, Mindo, — assim ele passou a me chamar — se fizer o trabalho direitinho, não se intrometer onde não for chamado, pode levar vida mansa até quando Deus quiser. Tem tudo no sítio, casinha ajeitada, água, luz, geladeira, condução pra passear, e até salário. Quer mais o quê da vida?

Se o Rubim soubesse meu avesso à paragem, se descortinasse o interesse que não vige em matéria estática... Mas o bigodinho renitente, feito pássaro coleirinha, só vascolejava as supérfluas vivências, as tramas diretas do visto e ouvido à língua, carente de crivo. Apois, melhor que assim fosse.

E dia foi que, em meio à aragem em tarde de agosto, no intervalo de farfalhar sobre eleições vindouras, Rubim, descascando uma laranja ao canivete, soltou:

— Sua patroa, D. Lucinha, deve de ser infértil; já virando década de casada e nada de criança. 

Enquanto mirava os chupavinhos caídos das sete-copas, alguns riscados de dentes de morcego, abriu-se-me essa lacuna, os porquês da ausência dum rebento, com a acintosa necessidade de vasculhar valores de sentido. 

E o tempo escorreu até chegarmos aos fins do inverno. Seco. Há tempos o céu cinza recoberto de fuligem de cana. Safra é sempre assim, me disseram. Ficou difícil conservar varandas limpas. Careceu manha pra manter o verde gramado. A terra clamava chuva. Mas a me secar qualquer outro pensamento, Lúcia, a ver que, no reparo fundo, olhos de candura resignada. Então veio a tarde em que tateei melindroso pra assuntar meus repisados reboos. Ela, com mel de jeito pra todas as crias, carinho evaporando do interior aos gestos, haveria de ser modelo de mãe, falei, enquanto misturava a ração do Reluz. A feição dela demudou. Com assustadiça defesa, fingindo desimportância, rumou poucos passos à baia do equino:

— Orosmindo, você vai dando lado pra boataria do povo? Sua irmã já me contou que você anda de vadiagem pelos bairros da cidade...

— Pois viu maldade no meu comentário? Digo o que vige no fundo do meu sentir; o talhe de D. Lucinha é de gestar amor, é de quinhoar beleza ao cuidado por broto do próprio ventre.

Ela, que acabara de liberar o fecho da baia, a fins de levar Reluz ao piquete, esbarrou, largou as rédeas, as amêndoas dos olhos súbito aljofradas, o corpo fechando-se feito planta dormideira até encorrugir sentada no tamborete ali largado. 

Acheguei-me, real prestimoso à ferida dela exposta, de joelhos, pra equiparar altura, o Reluz assentindo, testemunha de pescoço mexido abaixo. Eu era de fora, despegado, ave de passagem, ouvido leve de desabafo; medo não carecia. Porém, vi que temor não era; tristeza calada, sim, era; desgosto rescaldado, lume resistente ao sopro gelado da decepção.

— Pois bem, meu amigo, de você nada se esconde... Essa é minha sina, viver com o ventre a esperar. Espera em vão... — a voz vinha dos esconsos, compassada — Júlio não aceita filhos. Apenas ele, e mais ninguém. Fez uma cirurgia, esterilizado, semente que não germina. Na insensata desconfiança, ainda me obriga a tomar as pílulas. Ele mesmo controla, dia a dia, todos os meus ciclos... E todos me creem seca, infértil, incapaz de gerar vida... Eu, tanto a dar de mim, tanto afago guardado... 

— Acaso tu não tens boca e asas pra fazer ninho em outras paragens?

Reluz, subitamente, assoprou, começou raspar cascos na terra batida, recurvou as orelhas pra trás. Eu firmei ouvido, aguçareiro.

— Orosmindo, vivo em pé de ameaça... Se contar qualquer coisa, ele diz ter provas contra meu pai pra deixá-lo apodrecer na cadeia. Ou, se preferir, estala os dedos e faz sumir quem ele quiser. Não duvide. Você não conhece essa gente... — Lúcia sobressaltou-se; eu já era aguardo.


Uma sombra comprida alcançou nossos pés.


— Que é que tá fazendo aí com minha mulher, seu caboclo filho duma égua? — era Júlio vestido em roupa de borracha, ainda pingando água da represa, vindo acintoso disparatado em nossa direção. 


Ouviu-se silvo sibilado de serpente? Um relincho de priscas eras assomou, imperioso. Reluz se interpôs. O pelame castanho escuro rebrilhou nos músculos tesos. Narinas extremosas de dilatadas. O impulso, das entranhas da terra. Patas dianteiras em riste, rabiscando ódio no ar. — Cavalo do demo!... ­— últimas palavras. Patas pesadas pisando peito como se pilão. O corpo de Júlio tombado e Reluz repisando veztrês, tripúdio, corcel afogueado de ventas e cascos. Sonido de ossos esmiuçados. Sobrara um invertebrado sob a pele de borracha? 

Então o mangalarga serenou. 


Seguiu-se na cidade comoção ensaiada a partir das novas de morte do Chiarelli mais moço. Assunto de animar muitas rodas em siso social, camuflado pesar. E extravasou recantos. Relevo nacional. 

Investigação muita; horas de cadeira mais ainda, em repisados depoimentos. Dr. Sampaio contratou advogados de altura pra garantir só esclarecimento. Ensaios. Fiquei guarnecido de tabela. Enfim, suma trágica: fatalidades. Júlio, fora de seu costume, decidira, por conta, dar alimento e soltura ao cavalo. Este, variado de loucura ou tomado de estranheza? Lúcia, na estufa de flores, e eu, de arranjos no depósito, apenas sondamos grito. Corremos só pra desatar desesperos — Júlio jazia às patas de Reluz. 

Decidiram sacrifício do altivo equino. Expiação injusta, ideia minha de relampejo, mas, no meio dessa viagem nossa, refiz meu conceito. Reluz sendo herói, banhou com seu sangue honrado a terra vermelha. Ora, pois, que assim o causo ganha garbo, não acha a senhorita? Ah, sim, sim, Lúcia... Segredei de propósito, a ver se não havia perdido o desvelo dos ouvidos da moça... Lucinha partiu além-mar, passar tempos com tia que mora em terra chamada Andaluzia, escolhida vida em Sevilha. Volta mais, não. Achismo meu. E cá estamos neste ônibus destinado ao estado sulista do Paraná. Venho curioso de friagens. Veja, lá, pela janela: eita! que o mundo não devirou belos trigos amarelos?