sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A risada que não quer calar

Fui ver Coringa ontem, na última sessão disponível, às 22h30, e depois de ter rodado quase 700 km entre Irati e Rio Preto. A expectativa estava acima do cansaço, visto que tenho acompanhado o material de divulgação (teasers, trailer, comparação com os demais coringas do cinema), alguns textos da crítica e comentários de amigos nas redes sociais, quer dizer, toda essa convergência de mídias que hoje se soma à experiência de fruição, ainda mais na indústria do cinema, que precisa justificar na bilheteria o alto custo de produção. Também me motivava a experiência daquele leitor adolescente que, em meados dos anos 90, leu uma das edições de Batman: a piada mortal (1988) do Alan Moore.
O que tenho a dizer? Primeiro que, depois de uma noite de sonhos intranquilos, estou ainda a digerir a obra enquanto tento corrigir redações e fechar o trabalho do terceiro bimestre. Esse Todd Phillips assumiu, como diretor, o próprio Joker: tirou da manga a carta de adaptações de quadrinhos que domina o cinema comercial há alguns anos para implodir os clichês da tendência. E a atuação de Joaquim Phoenix permanecerá entre as grandes, tal como a de Jack Nickolson n’O Iluminado ou a de Robert De Niro no Taxi Driver. Desde a primeira cena me tensionei na poltrona e fui sendo tomado por um misto de repulsa e identificação, empatia e aversão, de modo sobreposto e indiscernível em razão da complexidade de construção da personagem.
Ainda sob o impacto do filme, só tenho condições de partilhar algumas impressões:
1. Num plano mais imediato, a obra conseguiu sintetizar a decadência de um modelo social que lança no próprio indivíduo a responsabilidade em se adestrar para cumprir os padrões de produtividade naturalizados como sucesso e felicidade. É uma cuspida na cara dos arautos da “felicidade treinável”. Arthur Fleck é incapaz de se adequar, e o sistema não perdoa sua fragilidade. Ao tomar consciência disso, Fleck descobre, ironicamente, o seu mindset numa sociedade que esmaga o desajustado, o freak, o não produtivo do ponto de vista utilitário, ou mesmo a massa de desempregados e desassistidos. É o mindset da violência, da destruição, do caos.
2. Como representação da decadência de uma sociedade, não dá pra desviar das concepções de herói romanesco, no entrecruzamento entre o gênero literário romance e seu correspondente no audiovisual, isto é, o longa-metragem. Em um mundo degradado, o herói busca um valor autêntico: Arthur quer ser reconhecido como sujeito ─ não se trata apenas de fazer os outros rirem, como lhe foi doentiamente incutido na infância traumática, mas sim de ser ouvido e reconhecido de verdade. Desse modo, o herói buscará esse valor por meios também degradados a partir do momento que reconhece ser uma carta fora do baralho no jogo do sistema.
3. A linguagem da violência no filme não é (nem poderia ser) a épico-pasteurizada dos filmes de super-heróis das franquias Marvel/DC nem a hiperbólico-irônica a la Tarantino. Coringa é de uma violência crua e perturbadora que alguns chamariam equivocadamente de realista, já que o realismo não passa de construção. Mas chamar o filme de realista, como fizeram Lilian e meu cunhado Flavio (que estavam também desnorteados), explica a capacidade de traduzir o espírito da nossa época.
4. Outro tema (articulado aos comentários acima) que parece captar esse espírito de época, haja vista a quantidade de produções contemporâneas sobre ele, além do intenso debate que tem suscitado, é o seguinte: como lidar com as doenças mentais? O filme não idealiza a doença mental, pelo contrário, faz o espectador sentir o que é sofrer com isso. A aproximação entre a loucura e a arte, no filme, é cruel. Não há redenção, por mais que, em alguns momentos, haja uma sensação de revanche ─ esquemática, mas contundente ─ pela dor e marginalização para as quais os outros não dão a mínima ou, pior, sentem o prazer sádico em provocar.


São essas as ideias que consigo articular no momento, mas Coringa é daquele tipo de obra que oferece camadas e mais camadas quanto mais o espectador se debruça nela. É significativo, por exemplo, a história ser ambientada no início dos anos 80 (para ser mais preciso, o ano em que nasci, 1981), sem falar na escolha das músicas da trilha sonora e na qualidade da trilha original.
Enfim, é um filmaço. Acredito que não haverá outra vez no cinema uma risada tão perturbadora quanto a que Joaquim Phoenix descobriu em seu aparelho psicoafetivo.
Para os desavisados: não vá ao cinema buscando duas horas de entretenimento ou um escape aos problemas.