sábado, 16 de fevereiro de 2008

Medo

Medo. O medo
me divide me mascara me
pressiona à persona
E vêm várias no único páreo
a concorrer na mesma raia a
que prêmio? a corrida:
ela acabada, e O medo
ando em casa de espelhos
velhos novos eu que são
eles e eu, José no Egito
de um mesmo pai: O Medo.
bastardo, tu vasas os olhos
porque há que se crescer ler fazer
há que se comer vestir sorrir ir ir
há que se levar trazer trepar com muitas
muitos são os há que... E o medo. O
E só o pronto plâncton recobrindo
O mar fundo profundo improvável
mas todos alga — superfície — parasitas
da luz que gerou Lúcifer
porém o mar e o medo
a luz cambiante ante o antes e o depois
movendo Ismos, graals de gelo
na mesa em chamas do tempo, minha cadeira
a durar um facho azul-amarelo da luz:
uz
E não adianta (nem atrasa)
a lira a gira o tédio, viver num prédio
casto justo santo, viver no campo
sujo ogro imundo, viver no mundo
nem mesmo chamar-se Raimundo
se o fundo-profundo prova
de que resta em infinita sobra
Medo. O medo

maio de 2002

sábado, 9 de fevereiro de 2008

A autópsia de um pombo

Meu primo Adriel odeia pombos. “Não passam de ratos com asas”, define ele. De fato, por mais empatia que se tenha por animais, esses bandos de pombos pululando na cidade raramente despertam sentimentos amistosos.

Para começar, pombo arrulha. Veja que palavra feia: arrulha. E esta tem tudo a ver com o sussurro insistente e funesto emitido pelo bicho. Tem pássaro que canta ou gorjeia. E o pombo, o que faz? Arrulha!

Outra coisa é a empáfia e ousadia desses animais. Nas praças e calçadões, eles estufam o peito e ficam passeando como se fossem gente, mais do que isso, como donos do pedaço. Faça o teste: um pombo só se assusta de verdade e foge num voo rasante se você ameaçá-lo com um chute ou, numa atitude mais extrema, sair correndo atrás dele. Obviamente, quem passará por ridículo numa situação dessas é você, e o pombo vai manter sua dignidade intacta, pousando em outro canto para continuar a vida de ave desocupada. Repare, ainda, que essa ave prefere muito mais andar que voar. E anda dando aqueles pinotes para a frente com a cabeça, como se quisesse ter braços para se equilibrar melhor. Quando voa, é para dar um susto; o animal adora tirar uma fina do pedestre distraído.

E quem mora em prédio invadido por pombo sabe bem como é difícil a convivência. Adriel me contou quantas horas de sono perdeu com um casal de pombinhos que se aninhou no buraco do ar condicionado do quarto dele. Cinco da manhã e os malditos trocam arrulhos apaixonados ou se exaltam num rrruuu rrrruuu infernal. É besteira tentar espantá-los. Eles são perseverantes e em menos de 5 min estão de volta.

É difícil admitir, mas os pombos são verdadeiros animais cosmopolitas. Eles se adaptam sem problema à vida nas cidades. Eles não se sentem incomodados de dividir conosco o espaço citadino. Então, cada uma de nós sente o orgulho ferido de ver um ser considerado tão insignificante lidando tão à vontade com a loucura da vida urbana. O cotidiano pode ser massacrante e ameaçador, e os pombos parecem debochar da condição a que estamos submetidos, pois tiram de letra a vida numa realidade que muitas vezes (ou sempre) é absurda.

Toda essa divagação sobre pombos me veio à caixola ao lembrar das histórias cômicas do Adriel e também depois de conhecer um poema do crítico de cultura, tradutor e poeta Nelson Ascher. O belo texto, transcrito a seguir, é Elegia, publicado em Ponta da língua, de 1983.

Elegia

Primeiro, fatos: uma
fuselagem de penas
há pouco destroçada
no asfalto, por assim

dizer, indiferente
às mesmas, antes brancas,
que, se já não contestam
a hegemonia cinza

do acaso ao fim da tarde
exceto pela mancha
vermelho-suja, ou seja,
o voo em negativo

de vísceras explícitas,
sugerem, todavia, o
que, sem dúvida,
fora um pombo. Nada trágico:

um episódio apenas
na sequência total de
fenômenos anônimos
e além disso complexos

demais para a cabeça
de um pássaro, aliás,
somente uma cloaca
volante, ameaçando a

tranquilidade asséptica
dos pedestres. Contudo,
na reformulação de
seus componentes, algo,

anódino talvez, se
perdeu. — Mesmo o poema,
na melhor das hipóteses,
não passa de uma autópsia


Essa leitura para mim foi o salto, na verdade bem curto, entre o cômico e o trágico. O corpo de um pombo estraçalhado no asfalto é o clique para uma clarividência sobre a condição humana. Que importância tem o cadáver aberto e as “vísceras explícitas” de um animal que nunca pôde medir a complexidade de sua existência? A morte apenas selou o inescapável anonimato de um ser insignificante. Contudo, o pombo, como tudo aquilo que vive, atesta veementemente a incapacidade de conter vida. Diante dessa questão hiperbólica, a finitude, nós, homens e mulheres de uma sociedade moderna, em meio a incontáveis e cada vez mais velozes “fenômenos anônimos / e além disso complexos” descobrimos que o sentido da existência nos escapa fatal e invariavelmente como a própria vida. Um indivíduo só poderia fazer uma autópsia de sua existência, para vasculhar as vísceras de sua relação com o tempo e o espaço, e reconstruir o corpo completo de sua experiência, após a própria morte. Eis a angústia do impossível!

A constatação final em Elegia é de que o poema não passa de uma autópsia. De modo mais amplo, a arte é essa autópsia, que se reverte, contudo, em vida. A arte é uma angustiante autópsia existencial, a forma que busca ser a soma de todos os momentos, a forma que investiga cada célula do corpo de nossas experiências. Como afirma Proust, por meio do narrador do Tempo Revisitado: “uma obra de arte é o único meio de recuperar o tempo perdido”.

Meu primo Adriel ainda odeia pombos. A maioria das pessoas não gosta deles ou os ignora. Mas mesmo a insignificância desses animais pode transformar-se em poesia, o resgate do algo anódino que talvez se perdeu.