sábado, 10 de março de 2018

As telas de Van Gogh revisitadas na tela do cinema


Ao lado de "Sonhos" (1990), do Kurosawa, o filme "Com amor, Van Gogh" (Loving Vincent, 2017) é a mais bela homenagem cinematográfica ao pintor holandês. Nos sonhos, os oito episódios, em conjunto, emulam uma pincelada em espiral cujo centro de rotação é o episódio Corvos (com Scorcese no papel do pintor!). Quanto à animação, que levou vários prêmios e foi indicada ao Oscar, a proposta de Dorota Kobiela e Hugh Welchnan foi  mais didática do que recriadora, mas não deixa de ser ambiciosa: 125 pintores foram selecionados pra produzir, segundo as técnicas do artista, milhares de quadros a óleo que compõem as sequências narrativas do filme. E o resultado é de emocionar. As pinturas mais conhecidas de Van Gogh servem de fio condutor pra construção do enredo, e vão ganhando movimento pra revelar novos enquadramentos, angulações, outras incidências de luz, o fora de quadro, as possibilidades de ser e estar no mundo das pessoas com quem Vincent conviveu e que ele representou (e imortalizou) em suas telas: os Roulin, os Gachet, Adeline Ravoux...




A opção por reconstruir os últimos dias do pintor a partir de uma investigação empreendida pelo jovem e impetuoso Armand Roulin, com seu fulgurante paletó amarelo, também foi muito feliz. Evitou que a narrativa caísse num biografismo sem graça. Tenho apenas uma ressalva quanto ao roteiro. Embora o mergulho casual de Armand na busca pelas razões da morte de Van Gogh promova um diálogo interessante com o gênero policial, levando o jovem primeiramente a Paris e, finalmente, a Auvers, a entrevista final com o dr Paul Gachet, responsável pelo tratamento do pintor nas semanas antecedentes à morte, acaba fechando uma resposta para o suicídio, o que rasga o véu do mistério, do enigma, que tem forma na tela que ele estava pintando quando deu o tiro no estômago, "Campo de trigo com corvos".

O viés de causalidade do roteiro acaba creditando a morte a um sentimento de culpa de Van Gogh, instado pelo ressentimento de Gachet, o médico frustrado, que desejava ser pintor e copiava os quadros de seu paciente. Ao ser confrontado pelo ruivo colérico, que deixou às claras a covardia do doutor, Gachet teria contra-atacado enquadrando Vincent como um peso na vida do irmão Theo, cuja doença estaria se agravando devido à responsabilidade assumida de tutelar o mais velho, genial mas incapaz de se virar sozinho aos 37 anos de idade. Duas semanas após essa discussão, viria o fim trágico. Esse desenlace é muito limitador, empobrece as camadas da narrativa, achata o sentido da representação das tensões dialéticas entre vida e arte, amor e morte.

Mas o mais bonito mesmo é que o filme se realiza num diálogo profícuo entre pintura e cinema, multiplicando, em movimento, as inconfundíveis pinceladas e combinações de cores do grande artista, que em vida não conseguiu vender nenhuma (não conto aquela que o próprio Theo comprou escondido) de suas mais de 800 obras.

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