quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Corcel afogueado, ou o périplo de Orosmindo

     
Cavalo em uma paisagem, Franz Marc, 1910


Não vim de Rio do Prado por sonho de vida próspera, com a certeza de enricar, ou por deslumbre com as luzes do sul. Nada disso não. Vim por vir, a convite, e sem muito rebuliço. Minha irmã mais moça, Geralda, em Sertãozinho já pra mais de cinco anos, escreveu naquela carta: “Arreda o pé dessa terra sem muito futuro e vem cá. Aqui não abunda como contam, mas também não se carece como aí. Quem sabe não arruma moça honesta a formar família? Trabalho já tem arranjado com o Seu Chiarelli. Ele está precisado de alguém pra cuidar dum sítio, ordenhar punhadinho de vacas, tratar das galinhas, dos porcos, dos gansos; vigorar horta, gramagem e pomar. Aguardo resposta de urgência”.

Reparei no feitio do convite que era pra decisão de repente. A trabalho, qualquer que pesado, nunca me neguei. O dia cheio na labuta diminui o desejo das folganças muitas da carne, assim sempre me palavreava o pai. E mais pra mim ele reponteava o fraseado, por ver minha disposição de natureza pelo gozo de prazeres com mulher. Essa que sempre foi a maior tentação minha desde bem moleque. Não quis saber de iniciação barranqueira com animal de cria, não. Com doze anos fui decidido sozinho por mulher formada em casa de tolerância. Primeira vez fui objeto de caçoado, quando juntei bem umas pecúnias e fui procurar casa de Dona Abadia, que cuidava de punhado de mulher-dama. Não era nem noite, quando as sombras encompridam, cheguei lá, passei pela portinhola aberta pra rua, entrei pela porta da frente escancarada e vi duas moças pintando unha enquanto assistiam a novela. Falei com aquela voz mal firmada de rapazola, “quero escolher mulher pra satisfação”. As moças repararam em mim, olharam uma pra outra e quase se mijaram de rir. E então a parda de cabelo sarará se aprumou e disse: 

— Ô minino, não acha que veio cá muito cedo não? 

Ao que perdi um pouco da confiança e olhando pros pés descalços: 

— Já faz escuro... e se chego pra mais tarde em casa levo reio. 

Percebi que elas amoleceram. Pra mim, (me perdoe, senhorita, a pura protérvia) mulher, quando amolecida, é tal qual barro pra moldar, é só acertar a mão — isso foi trabalho cedo aprendido e o único a que me disponho a qualquer tempo sem obrigação. 

Mas sem perder o rumo da prosa, quando me apercebi, estava já de trouxa pronta. Família de nove filhos amaina a resistência de pai e mãe, sobretudo quando há carência de atividade rentosa ao redor e sobra vontade de viver ventura de cidade maior em região que dizem mais próspera. Mas o caroço de meus motivos não era figurar canaã, que não sou marionete de esperanças. Não sei por que nunca fui, embora criação justa cristã. Sou de falta de sossego. Careço movimento. Então parti com umas duas trocas de roupa, pote de paçoca salgada e o cantil de couro de bode, porque sede é o que mais incomoda quem toma rumo de estrada sem saber como e quando chega ao destino. Arranjei primeira carona num caminhão de granja até Teófilo Otoni; daí pra baixo, nos mais de mileduzentos quilômetros, nem vale a pena relato de perrengue, debaixo de sol refletido em ondas no asfalto e chuva de encharcar as ventas, mal dormindo em posto e praça, naquele janeiro de 1989, até arrastar o corpo moído e torrado pela Avenida Antonio Paschoal, passar pela rodoviária e subir anguloso até a Praça 21 de Abril, em Sertãozinho. Queria ver o miolo da cidade, pontear o centro de onde todo o resto irradia, a fim de ter medidas de comparação com as pontas, as arestas, que são os lugares onde real paira meu interesse em cidade que vai crescendo como raízes adventícias.

Busquei a carta de Geralda, bem guardada no embornal. Ali ela havia deixado número de telefone. Dei prosseguimento no arranjo de ficha e discagem de orelhão. Tocou muito seguido até eu ouvir voz de mulher, não de minha irmã; era d'outro tom e melodia. Dei referência de prontidão pra evitar susto ou conversa esbarrada. 

— Quem lhe fala é Orosmindo Abdias dos Reis, vindo a convite de minha irmã Geralda Jacira dos Reis, e já presente nessa comarca sertaneja. 

Ouvi eco de riso e resposta meiga de "espera um pouquinho, por favor, que vou chamar".



Não tardou pra logo pegar costume e formular compreensão da terra. O sítio referido por minha irmã era uma das propriedades do Chiarelli, que respondia por Júlio em primeiro nome. Peneirei os grãos da história familiar do meu então patrão. O pai fora pioneiro em moer cana, que vertia em açúcar e álcool, e disso sugou riqueza. Dos cinco filhos que herdaram a usina e as vastas terras, o primogênito, de nome Rodrigo, mas conhecido pelo diminutivo, era o mais atinado pra negócios. Abraçara um projeto do governo na crise do petróleo pra fundar o clã do álcool — isso me resenhou um velho ladino durante partida de bocha numa praça onde ia carpir informação. A usina se tornara rio de muitas veredas lucrativas, entre elas metalúrgica, distribuidora de bebidas e lojas de automóveis. A família barganhava nas altas esferas.

Júlio, meu patrão, era o rapa do tacho. Caçula mimado, mulherengo caprichoso que, em adolescente, lhe apetecia circular pelos bairros de pobre montado em carrão ou motocicleta pesada a fins de arrastar mocinhas de esperanças novelescas. Contava cabaços rompidos, diziam. Contudo, o que sobrava em espírito desbravador de mocinhas casadouras, faltava em rigor nos estudos e em paciência pras atividades de esmiuçar pensamento. Ademais, relatavam, não sei se por despeito, que seu fogo de macho era curto, era tão ligeiro quanto suas máquinas, que deixavam visgo de pneu e rastro de fumaça nas ruas e vielas.

A rotina de garanhão sem cerca foi, porém, esbarrada pela família. Meu informante, o Rubim, soldador aposentado também conhecido na bocha, jura que tal fim se deveu a um escândalo abortado, melhor dito, um aborto que se faria escândalo não fosse uma dinheirama pra convencer os pais da menina a emudecerem. O procedimento ocorrera em clínica de Ribeirão Preto, com médico de confiança dos Chiarelli. Em Sertãozinho não quedaram. Que o risco de resgatar a história devia ser apagado. A família mudou-se, arrematou Rubim num lance de bola vermelha, pra Pedro Juan Caballero, onde abriram portinha de comércio.

E Júlio firmou casamento repentino, aos 22 anos, depois de namoro estival, com a filha única do Dr. Sampaio, promotor público, parceiro de Rodriguinho Chiarelli em pilotagem de helicóptero e figurinha repetida nos jantares servidos pelo usineiro. À época, Lúcia, mas chamada Lucinha Sampaio, estava nas metades do curso de Odontologia, embora seu consultório já estivesse sendo montado em ótimo imóvel na rua Aprígio de Araújo.

A parte que me cabe nessa história tem princípio dez anos depois. Naquela carta de Geralda vislumbrava eu no Chiarelli um galegão gordo sitiante, que vivesse das benesses da pequena propriedade. Engano. O sítio era sede de fazenda. Me explico: Júlio recebera do pai terra vasta pra plantio de cana, a ser moída depois na usina familiar. Avesso ao trabalho de administrar a plantação, Júlio arrendou-a, mas manteve a sede sob seus cuidados por escolhidos motivos. Primeiro, conforme presumi, o de manter alguns animais de criação pro gosto e agrado de Lucinha, que se enlevava na beleza justa daqueles bichinhos. Ela fazia questão de, em presente, dispersar a quirela pras galinhas e angolas, escovar o pelo e trançar as crinas do mangalarga Reluz, tirar leite das holandesas Sula e Miranda, entre outros carinhos e caprichos; os gestos de Lúcia como que saíam de abscôndito relicário. Segundo, e este o motivo reinante, conhecido de todos, a presença da represa onde Júlio praticava seus esportes aquáticos, no jet-ski ou nos esquis aquáticos puxados por arretada lancha, quando levava piloto. Coube a minha serventia morar no sítio e deixá-lo nos conformes pra receber o casal aos finais de semana, vez ou outra acompanhados de visitas. O último caseiro havia voltado com esposa e dois meninos pra terra sua de nascença, perto de Ilhéus, por herança de um pedacinho de terra. 

Foi quando minha irmã fisgou a oportunidade e me pescou com a dita carta. Ela achava que Rio do Prado me desperdiçava. Me via como irmão destoante, mais solerte que os demais. Geralda cozinhava pros Chiarelli na casa da Nova Sertãozinho, bairro da gente endinheirada. Cuidava do café e do almoço, mas seu tempero, bolos e doces lhe valiam um pagamento razoável e podia sair às três da tarde. O marido era vigia de empresa e vivia rotina de coruja. Mas a dedicação e sina dela era mesmo com o menino Claiton, meu sobrinho de quatro anos, atacado de bronquite desde novinho. Decidi não interferir muito naquela rotina em que minha irmã, embora reclamasse, construíra seu orgulho de gente honesta que paga as contas e vive ordinários problemas. Comecei a plantar minhas próprias raízes e fui me espalhando onde elas pudessem alcançar.

Assim sucedeu que logo tomei jeito com as tarefas do sítio. As necessidades do pomar, a poda dos verdes, a limpeza e manutenção das dependências, o cuidado com os animais, seguindo certo as recomendações de Lucinha e do doutor veterinário, que eu fingia escuta de novidade, pra agradar. O lugar ficou um brinco, aprazível e vivo de brilhar os olhos. 

Fisguei mais ainda o rebrilho nos olhos de Lúcia na confiança ganhada junto ao mangalarga. Conquistei Reluz. O começo é observação de orelhas, narinas, cauda, patas, sobretudo olhos — aos quais nada escapa —, e, depois, a aproximação macia, mas confiante. De sobejo, torrões de açúcar, espigas escolhidas, cuidado sincero ofereci, e fui aceito. Embora de bom grado, pois queria dividir respeito com aquele cavalo imponente, a amizade do animal me valeu mesmo o encurtar distância com Lucinha. O patrão não tinha paciência pra desvelo de animais. Desconfio que até medo fosse, mesmo. Ficava ajustando motor de jestskis, depois se jogava na represa, indiferente ao fora d'água, montado no brinquedo, a gente ouvindo de longe os recortes de zunido. E a mulher, de primeiro demarcando espaço, séria patroa, foi atinando agudo interesse por meus costumes e saberes de campo. Como conhecia o tempo de cada planta? Tratava de cavalos em minha terra? Não achava que os bichos conseguem ver nossa alma? A cada pergunta, descobria nela uma vontade verdadeira de saber. Não estava motivada por educação, tédio, nem mesmo solidão, ou o disfarce era muito vero. Pois bem. Me dispus ao lídimo diálogo. Dizia tudo o que sabia sobre a terra e os animais de domesticação, rotina minha em família, buscando sempre a palavra precisa. Lúcia figurou-se a mim uma mulher que eu não desejava possuir, mas cuja beleza esguia e companhia plena me compraziam nos recônditos. Ao que antes não fosse razoável amizade com moça desejável, foi o sucedido. Amizade bem nutrida nos fins de semana, em remanso de conversas vivas e labor suave.

Durante semana, me ajustei pra conduzir qualquer circunstância; com tudo arrumado e seguindo ordenado fluxo, antes do sol a pino, o grosso do trabalho já concluído. Hora de tocar à cidade. Júlio me deixara uma mobilete pra emergências. E no depósito, galões de gasolina de sobra. De primeiro, quando asseverei desconhecimento de pilotagem, o patrão debochou:

— Nunca andou de bicicleta? A diferença é o motorzinho, que você controla aí na mão. Em todo caso, do chão não passa.

Avexado, mas sem figurar, eu disse que, ao carecer a serventia, montava. Apenas testei a bicha quando sozinho. Tombos bestas. Poeirão levantado. Porém em pouco prazo a bicicleta roncante domada. Dali adiante, o caminho pra cidade ficou questão de quarto de hora. Tomar sorvete de coco queimado no bairro São João, ver treino no campo do Alvorada, contemplar moças da patinação artística no Docão — tardes de plenas vontades. Inclusive arrumei o chamego de viúva-moça, a baiana Irene, que tocava um carrinho de cachorro-quente lá pelos começos da Av. Nossa Senhora Aparecida. Contudo, de costume, a parada era mesmo no Horto, nos limites da Cohab III. Ali uma praça repleta de mesinhas de carteado, dama e dominó; uma cancha de bocha; olor bom de eucalipto; um punhado de aposentados da cana fugindo das senhoras, dos netos, do vazio do ócio. Em meio a comprovantes de pagamento da aposentadoria e ao par de jornalecos citadinos, a prosa se preenchia do que corre à boca pequena. 

Adentrei o círculo aos poucos, pois vislumbrei que a gente de fora, mormente os do norte, padece bruta desconfiança. Ao flagrar paisagem, vi e ouvi conteúdo de gaiolas penduradas. Embora aperreado por aquelas asinhas presas, abri sorriso e perguntei, em vênia, quem sabia de canário da terra cantadorzinho pra negociar. Quando me replicaram se eu sabia lá alguma coisa de passarinho, puxei o gatilho das treinadas imitações de curió, igarassu, bigodinho, trinca-ferro, corrupião e canários vários. Plateia minha. Caminho aberto. 

Quem decidiu real admiração por mim foi o Rubim, cabelos já todos banhados em prata, sempre besuntados na brilhantina, bigode penteado, olhinhos pequenos e inquietos, voz rouca e incansável. Me dizia que eu era diferente dos outros paraíbas risca-faca. Que demonstrava estirpe instintiva. Que eu já estava até falando igual a paulista, mais esbarrado, carregando o erre. De minha vez, disfarçava o rancor pelo avilte aos que vinham de longe se gastar na cana, retinha apenas os elogios pra meus ganhos — sagaz de disfarces? 

Sim, como a moça já sabe, e redigo, foi o Rubim que me deu a conhecer o que o povo especulava sobre o patrão e a família Chiarelli.

— É, Mindo, — assim ele passou a me chamar — se fizer o trabalho direitinho, não se intrometer onde não for chamado, pode levar vida mansa até quando Deus quiser. Tem tudo no sítio, casinha ajeitada, água, luz, geladeira, condução pra passear, e até salário. Quer mais o quê da vida?

Se o Rubim soubesse meu avesso à paragem, se descortinasse o interesse que não vige em matéria estática... Mas o bigodinho renitente, feito pássaro coleirinha, só vascolejava as supérfluas vivências, as tramas diretas do visto e ouvido à língua, carente de crivo. Apois, melhor que assim fosse.

E dia foi que, em meio à aragem em tarde de agosto, no intervalo de farfalhar sobre eleições vindouras, Rubim, descascando uma laranja ao canivete, soltou:

— Sua patroa, D. Lucinha, deve de ser infértil; já virando década de casada e nada de criança. 

Enquanto mirava os chupavinhos caídos das sete-copas, alguns riscados de dentes de morcego, abriu-se-me essa lacuna, os porquês da ausência dum rebento, com a acintosa necessidade de vasculhar valores de sentido. 

E o tempo escorreu até chegarmos aos fins do inverno. Seco. Há tempos o céu cinza recoberto de fuligem de cana. Safra é sempre assim, me disseram. Ficou difícil conservar varandas limpas. Careceu manha pra manter o verde gramado. A terra clamava chuva. Mas a me secar qualquer outro pensamento, Lúcia, a ver que, no reparo fundo, olhos de candura resignada. Então veio a tarde em que tateei melindroso pra assuntar meus repisados reboos. Ela, com mel de jeito pra todas as crias, carinho evaporando do interior aos gestos, haveria de ser modelo de mãe, falei, enquanto misturava a ração do Reluz. A feição dela demudou. Com assustadiça defesa, fingindo desimportância, rumou poucos passos à baia do equino:

— Orosmindo, você vai dando lado pra boataria do povo? Sua irmã já me contou que você anda de vadiagem pelos bairros da cidade...

— Pois viu maldade no meu comentário? Digo o que vige no fundo do meu sentir; o talhe de D. Lucinha é de gestar amor, é de quinhoar beleza ao cuidado por broto do próprio ventre.

Ela, que acabara de liberar o fecho da baia, a fins de levar Reluz ao piquete, esbarrou, largou as rédeas, as amêndoas dos olhos súbito aljofradas, o corpo fechando-se feito planta dormideira até encorrugir sentada no tamborete ali largado. 

Acheguei-me, real prestimoso à ferida dela exposta, de joelhos, pra equiparar altura, o Reluz assentindo, testemunha de pescoço mexido abaixo. Eu era de fora, despegado, ave de passagem, ouvido leve de desabafo; medo não carecia. Porém, vi que temor não era; tristeza calada, sim, era; desgosto rescaldado, lume resistente ao sopro gelado da decepção.

— Pois bem, meu amigo, de você nada se esconde... Essa é minha sina, viver com o ventre a esperar. Espera em vão... — a voz vinha dos esconsos, compassada — Júlio não aceita filhos. Apenas ele, e mais ninguém. Fez uma cirurgia, esterilizado, semente que não germina. Na insensata desconfiança, ainda me obriga a tomar as pílulas. Ele mesmo controla, dia a dia, todos os meus ciclos... E todos me creem seca, infértil, incapaz de gerar vida... Eu, tanto a dar de mim, tanto afago guardado... 

— Acaso tu não tens boca e asas pra fazer ninho em outras paragens?

Reluz, subitamente, assoprou, começou raspar cascos na terra batida, recurvou as orelhas pra trás. Eu firmei ouvido, aguçareiro.

— Orosmindo, vivo em pé de ameaça... Se contar qualquer coisa, ele diz ter provas contra meu pai pra deixá-lo apodrecer na cadeia. Ou, se preferir, estala os dedos e faz sumir quem ele quiser. Não duvide. Você não conhece essa gente... — Lúcia sobressaltou-se; eu já era aguardo.


Uma sombra comprida alcançou nossos pés.


— Que é que tá fazendo aí com minha mulher, seu caboclo filho duma égua? — era Júlio vestido em roupa de borracha, ainda pingando água da represa, vindo acintoso disparatado em nossa direção. 


Ouviu-se silvo sibilado de serpente? Um relincho de priscas eras assomou, imperioso. Reluz se interpôs. O pelame castanho escuro rebrilhou nos músculos tesos. Narinas extremosas de dilatadas. O impulso, das entranhas da terra. Patas dianteiras em riste, rabiscando ódio no ar. — Cavalo do demo!... ­— últimas palavras. Patas pesadas pisando peito como se pilão. O corpo de Júlio tombado e Reluz repisando veztrês, tripúdio, corcel afogueado de ventas e cascos. Sonido de ossos esmiuçados. Sobrara um invertebrado sob a pele de borracha? 

Então o mangalarga serenou. 


Seguiu-se na cidade comoção ensaiada a partir das novas de morte do Chiarelli mais moço. Assunto de animar muitas rodas em siso social, camuflado pesar. E extravasou recantos. Relevo nacional. 

Investigação muita; horas de cadeira mais ainda, em repisados depoimentos. Dr. Sampaio contratou advogados de altura pra garantir só esclarecimento. Ensaios. Fiquei guarnecido de tabela. Enfim, suma trágica: fatalidades. Júlio, fora de seu costume, decidira, por conta, dar alimento e soltura ao cavalo. Este, variado de loucura ou tomado de estranheza? Lúcia, na estufa de flores, e eu, de arranjos no depósito, apenas sondamos grito. Corremos só pra desatar desesperos — Júlio jazia às patas de Reluz. 

Decidiram sacrifício do altivo equino. Expiação injusta, ideia minha de relampejo, mas, no meio dessa viagem nossa, refiz meu conceito. Reluz sendo herói, banhou com seu sangue honrado a terra vermelha. Ora, pois, que assim o causo ganha garbo, não acha a senhorita? Ah, sim, sim, Lúcia... Segredei de propósito, a ver se não havia perdido o desvelo dos ouvidos da moça... Lucinha partiu além-mar, passar tempos com tia que mora em terra chamada Andaluzia, escolhida vida em Sevilha. Volta mais, não. Achismo meu. E cá estamos neste ônibus destinado ao estado sulista do Paraná. Venho curioso de friagens. Veja, lá, pela janela: eita! que o mundo não devirou belos trigos amarelos? 

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