domingo, 2 de março de 2008

A jagunçagem no mercado: a propósito da minissérie Grande Sertão: veredas

Nem tinha eu a idade do Miguilim quando foi exibida a minissérie Grande Sertão: veredas, em 1985, para comemorar os 20 anos da Rede Globo. Por anos ouvi comentários sobre esse marco da tv brasileira, uma empreitada ambiciosa de Walter Avancini e Walter Durst de transportar o sertão-mundo de Rosa aos limites do meio televisivo. Assim como o compadre Quelemen sobre a vida de Riobaldo, eu só sabia da minissérie de ouvir contar, e fiquei esperando o lançamento em dvd, caminho natural dessas produções globais. A expectativa se concentrou em 2006, ano do cinqüentenário de publicação do romance. Nonada. O ano se passou, lançaram-se edições comemorativas, o Museu da Língua Portuguesa fez uma bela mostra, críticos aproveitaram a oportunidade para publicar trabalhos, e nada da minissérie. Dá para se desconfiar qual seja um dos motivos. Já são conhecidas as batalhas com as herdeiras da obra do escritor mineiro pelos direitos. Então é possível figurar idéia dos entraves colocados pelas filhas de Rosa.

Tarde fui saber que a minissérie tinha sido exibida no Canal Futura. Daí, já imaginei: alguém gravou, digitalizou e deve estar tirando uns trocados com a venda clandestina. Não deu outra. Procurei na net e encontrei ofertas do produto, os 25 capítulos em 6 dvds. Engraçado que a encomenda teve de atravessar o sertão para chegar até mim; o fornecedor foi um rapaz lá da Bahia cujo nome bem poderia estar na lista dos personagens rosianos. Justamente essa forma marginal de obter produtos culturais me leva aqui a algumas considerações intrigantes sobre os descaminhos do mercado e da distribuição de bens culturais.

Quem é o provável público consumidor de uma minissérie como Grande Sertão: Veredas? Que se perdoe a generalização, mas se trata de um punhadinho de elite letrada, acadêmicos, estudantes de letras e cinema, um ou outro saudosista... Mesmo limitado, o mercado existe; tanto é que edições em dvd de outras minisséries de notável qualidade como Hoje é dia de Maria e Os Maias, do Luiz Fernando Carvalho, estão esgotadas. Porém, quando não se disponibiliza a obra pelos meios legais da indústria cultural, o que se observa, cada dia com mais força e articulação por conta do próprio desenvolvimento tecnológico, é o fenômeno que vou nomear “jagunçagem no mercado” (ideal para o contexto). O jagunço-internauta da Bahia gravou a minissérie e converteu o material para dvd; encontrei sua oferta numa vereda do sertão sem limites da internet. Agora, ao informar meus amigos que disponho do material, muitos se animaram a compensar o gasto que tive com a encomenda para que lhes empreste os discos, que serão copiados em seus gravadores de dvd. Como eu e meu bando estamos fazendo, muitos outros espalhados por aí devem também estar. E, assim, vamos nós disparando uns tiros contra o exército do mercado oficial.

Esse é apenas um exemplo pontual e modestíssimo perto das transformações que a jovem jagunçagem internáutica tem provocado na indústria. Contudo, a sutileza que se destaca no exemplo é o fato de serem os jagunços à procura da minissérie Grande Sertão, em sua maioria, professores, intelectuais, formadores de opinião, gente que muitas vezes, “no meio da tragagem de guerra”, busca refletir sobre a relação entre os bens do espírito e o valor de troca. Só concluo aqui, sem gastar muita munição, o que já sabemos: quem quer as benesses do espírito proporcionadas por obras de alta qualidade estética, tem que dar uma de Riobaldo e clamar pelo diabo.

Aproveitando o ensejo, cabe aqui comentar o último pé de guerra envolvendo a obra do nosso Guimarães Rosa. O estopim foi a edição de fevereiro da revista Bravo!, que, numa boa matéria de Mariana Delfini, publicou trechos de um diário inédito do escritor contendo suas anotações durante a II Guerra. Revelaram-se alguns detalhes da atuação de Rosa e sua esposa Aracy para tirar judeus da Alemanha durante o período. Era de se esperar que o conteúdo atraísse a atenção das igrejinhas acadêmicas que reivindicam para si o credo rosiano. Na seção de cartas da revista de março, apareceram declarações do pessoal da UFMG, que teve acesso ao diário na década de 1990. A Editora Nova Fronteira, por sua vez, declarou não ter os direitos da obra e que a decisão de publicá-lo cabe exclusivamente aos herdeiros. Como era de se esperar, as herdeiras Agnes e Vilma mostraram mais uma vez seu espírito “senhorial oligárquico” a respeito da obra do pai, afirmando indignação com a Bravo! por ter publicado os trechos inéditos sem o consentimento da família. Disseram ainda estar respeitando a vontade do pai, motivo pelo qual o diário não tinha sido publicado até hoje. As irmãs concluíram que, ainda que considerem a possibilidade de publicação, tendo em vista a importância histórica e literária do diário, vão podar os trechos que revelam a intimidade de Rosa, “em respeito à sua memória e imagem”. A coisa não parou por aí: dia 14/02 a Bravo! promoveu um debate em parceria com o Centro da Cultura Judaica, do qual participaram a professora Walnice Nogueira Galvão e os jornalistas René Decol e André Nigri. Segundo se relata na revista, as discussões sobre o futuro do diário pegaram fogo. Pelo visto, essa travessia vai dar campo pra muito chumbo ainda.

2 comentários:

Carmen Zambon disse...

Tão longe tão perto. Maior que sua teimosia na busca pela matéria televisiva foi a lucidez do Artur em reunir os pontos que des-ligam autor, adaptação, produção e ávidos leitores. Depois do relato desse assim-seja, dobremos joelhos ao e-commerce.

roseli disse...

Investidas como essa revitalizam o caro Rosa, incentivam leitores mais jovens, enchem nosso intelecto de otimismo.
Parabéns ,Arthur.
Roseli Gimenes