quinta-feira, 8 de setembro de 2016

CALOR, CANA, SOLIDÃO | Chico Lopes


       Vagalumes sem noite é a estreia de Artur Ribeiro Cruz no conto. O gênero, embora encontre dificuldades comerciais enormes num mercado editorial dominado por romances, biografias e livros de apelo raso e fácil, é um preferido dos verdadeiros escritores brasileiros, que o adotam para limar seu instrumento, a palavra, e enfrentar os desafios da narrativa curta para expressar concisa e convincentemente um mundo pessoal que se expõe e desdobra. Entra-se no conto como se entra numa disputa feroz com o xadrez literário: é necessário exprimir o máximo, reduzir personagens e filigranas, ser sim literato, ser sim lírico, mas com a máxima cautela para que a compacta solução não desande e se perca a partida até por excesso de habilidade e recursos.

        Eu conheci Artur como poeta em Semanário do corpo e, praticando os dois gêneros como ele, sinto que há uma afinidade natural entre conto e poesia, visto que ambos aspiram à síntese, aspiram a dizer muito recuperando a magia e a eficácia da palavra bem escolhida e posta no lugar certo para os fins certos.

        Esta, confesso, é uma estreia que me tocou de perto, tendo lido trechos dos contos de Ribeiro Cruz antes que chegassem a tomar a forma definitiva. Começo por “A última ceia”, que, posto no início do livro, já nos dá um panorama do que virá. Conto excelente, traz uma pungente Elen que, estigmatizada por ser filha de uma prostituta e com um filho na barriga, dando-se a homens brutais em meio a canaviais paulistas, sentindo que o encadeamento fatídico de sua vida tende a prosseguir, toma uma decisão.

       Senti uma imensa tristeza, e compreendi a dor de Elen na estreiteza mental de um contexto que conheço bem: o desse interior paulista onde Ribeiro Cruz nasceu (Sertãozinho) e reside (São José do Rio Preto). Entre oceanos de cana usurpadores de uma paisagem que já foi muito mais bonita, orgânica e variada, entre cidades pequenas e médias que se notabilizam por uma atividade comercial intensa e não raro uma total ausência de espírito e cultura, vem o registro lírico, mas sem ilusões, de vidas pequenas, proscritas, esmagadas por preconceitos e limitações que dificilmente podem ser vencidos. A decisão de Elen significará, na verdade, o único resgate possível a uma alma que quer se preservar e preservar, simbolicamente, o frutinho que carrega.

       Sinto perfeitamente o que Ribeiro Cruz pinta: sou de Novo Horizonte, SP, não tão longe de Sertãozinho e Rio Preto, e meus contos, desde muito cedo, procuraram seguir um projeto definido, ainda que sinuoso – registrar esse mundo de modo mais honesto do que o via registrado em geral na literatura brasileira, como se fosse constituído de pequenos paraísos interioranos cheios de “causos” pitorescos e personagens felizes com a vida, de bem com seus opressores seculares etc. Essa visão hipócrita e edulcorada sempre foi favorecida por literatos oficiais, daqueles que, em palanques de feriados municipais, deitavam tudo que conheciam de retórica parnasiana para exaltar do modo mais bairrista possível quimeras do poder e da cegueira. Quis que, nos meus contos, a realidade urbana do país em que vivemos presentemente aparecesse com clareza – para mim, as cidades pequenas e médias do estado de S. Paulo querem ser simulacros regionais da capital metropolitana, adotando, com a globalização, seus procedimentos, injustiças, cafonices, falsos benefícios, shoppings, impessoalidade e solidões. De modo que estou feliz por encontrar em Ribeiro Cruz um cúmplice talentoso e disposto a não fazer concessões a mentirinhas ou meias-verdades complacentes e confortáveis.

         Há nesse cenário um pouco de Paraíso? Sim, claro que há, mas ele não está desprovido da indissociável (e literal) Serpente, como se verá no conto “O retorno do cavaleiro andante”, onde um passeio de bicicleta de amigos, que vão caçar rãs numa Lagoa dos Cavalos, transborda em lirismo descritivo da fauna e flora regionais, mas é subitamente invadido por um senso trágico de realidade, que passeio juvenil algum jamais poderá abolir. As cidades podem oferecer ainda, em suas cercanias rurais, alguma ilusão de passado bucólico, mas oferecem sobretudo “vilinhas verticais” onde personagens como os de “A procura” e “Notas da solidão”, que vão se afundando em isolamento ou relações falsificadas a ponto de chegarem ao delírio ou a se ensimesmarem para sempre em suas pequenas vidas. Nesses prédios (gabados pelos bairristas deslumbrados, que neles veem a feliz realização “caipira” do sonho metropolitano) o que há são solidões contíguas, vidas que se perdem e se anulam, sonhos para sempre sepultados entre um corredor escuro e outro.

        Tenho que destacar um conto que, a meu ver, retrata muito do que vai pelo ar dessas cidades (e talvez de todo o país). É esse exemplar “Canção noturna”, dueto de mãe e filha evangélicas que retrata tanto a repressão sexual que é feita em nome de ideias do Velho Testamento e pregada por pastores interesseiros quanto a verdade universal de que o reprimido não poderá permanecer indefinidamente como tal. Ribeiro Cruz resolve isso captando essas duas vidas, de Marlene e sua mãe, dona Eurides. Já houve entre elas um Romero pai, mas as deixou – era um desses desertores meio patéticos e macunaímicos que, por causa de sonhos nada comuns e uma vontade irresistível de reverter a “normalidade”, parecem atrair Ribeiro Cruz e valer sua simpatia (veremos isso no comovente “Tio Valdim” e no peão Orosmindo, com seu périplo de Minas a Sertãozinho e sua vontade de não ficar em parte alguma). As duas vivem entre rezas e mortificações, até que um dia a mãe amanhece cantando “A camisola do dia”, de Nelson Gonçalves. E virá ainda a debochada “Meu vício é você”, e, claro, Nelson era na certa um ídolo do pai. A canção noturna, feita para o desnorteio, as obceca, e a figura do pai ganha o contorno de uma salvação pelo escape dionisíaco.


      Esta, garanto, é mesmo uma estreia promissora, porque encontrar contos com essa profundeza em livros de estreantes não é tão comum assim. Ribeiro Cruz parece nos oferecer um determinado microcosmo, que conhece muito bem, e dentro dele se move com uma desenvoltura de veterano, lembrando Rosa, Faulkner e outros escritores que captaram, no grão particular e na linguagem regionalizada, algo que vai muito além do pitoresco regional ou dos cartões postais de cidades que gostariam de ser vistas pelo que não são.


Chico Lopes é escritor em vários gêneros (conto, poesia, romance, ensaio) e também tradutor de ficção em Inglês. Tem publicados três livros de contos, dois romances, dois livros de poesia, dois livros de ensaios e um de memórias. Seu romance de estreia, O estranho no corredor, recebeu um Jabuti em 2012. É também pintor e pratica o jornalismo cultural escrevendo sobre livros e cinema.

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