Vagalumes
sem noite é a estreia de Artur Ribeiro Cruz no conto. O gênero, embora
encontre dificuldades comerciais enormes num mercado editorial dominado por
romances, biografias e livros de apelo raso e fácil, é um preferido dos
verdadeiros escritores brasileiros, que o adotam para limar seu instrumento, a
palavra, e enfrentar os desafios da narrativa curta para expressar concisa e
convincentemente um mundo pessoal que se expõe e desdobra. Entra-se no conto como
se entra numa disputa feroz com o xadrez literário: é necessário exprimir o
máximo, reduzir personagens e filigranas, ser sim literato, ser sim lírico, mas
com a máxima cautela para que a compacta solução não desande e se perca a
partida até por excesso de habilidade e recursos.
Eu conheci Artur como poeta em Semanário do corpo e, praticando os dois gêneros como ele, sinto que há uma
afinidade natural entre conto e poesia, visto que ambos aspiram à síntese,
aspiram a dizer muito recuperando a magia e a eficácia da palavra bem escolhida
e posta no lugar certo para os fins certos.
Esta, confesso, é uma estreia que me
tocou de perto, tendo lido trechos dos contos de Ribeiro Cruz antes que
chegassem a tomar a forma definitiva. Começo por “A última ceia”, que, posto no
início do livro, já nos dá um panorama do que virá. Conto excelente, traz uma
pungente Elen que, estigmatizada por ser filha de uma prostituta e com um filho
na barriga, dando-se a homens brutais em meio a canaviais paulistas, sentindo
que o encadeamento fatídico de sua vida tende a prosseguir, toma uma decisão.
Senti uma imensa tristeza, e compreendi
a dor de Elen na estreiteza mental de um contexto que conheço bem: o desse
interior paulista onde Ribeiro Cruz nasceu (Sertãozinho) e reside (São José do
Rio Preto). Entre oceanos de cana usurpadores de uma paisagem que já foi muito
mais bonita, orgânica e variada, entre cidades pequenas e médias que se
notabilizam por uma atividade comercial intensa e não raro uma total ausência
de espírito e cultura, vem o registro lírico, mas sem ilusões, de vidas
pequenas, proscritas, esmagadas por preconceitos e limitações que dificilmente
podem ser vencidos. A decisão de Elen significará, na verdade, o único resgate
possível a uma alma que quer se preservar e preservar, simbolicamente, o
frutinho que carrega.
Sinto perfeitamente o que Ribeiro Cruz
pinta: sou de Novo Horizonte, SP, não tão longe de Sertãozinho e Rio Preto, e
meus contos, desde muito cedo, procuraram seguir um projeto definido, ainda que
sinuoso – registrar esse mundo de modo mais honesto do que o via registrado em
geral na literatura brasileira, como se fosse constituído de pequenos paraísos
interioranos cheios de “causos” pitorescos e personagens felizes com a vida, de
bem com seus opressores seculares etc. Essa visão hipócrita e edulcorada sempre
foi favorecida por literatos oficiais, daqueles que, em palanques de feriados
municipais, deitavam tudo que conheciam de retórica parnasiana para exaltar do
modo mais bairrista possível quimeras do poder e da cegueira. Quis que, nos
meus contos, a realidade urbana do país em que vivemos presentemente aparecesse
com clareza – para mim, as cidades pequenas e médias do estado de S. Paulo
querem ser simulacros regionais da capital metropolitana, adotando, com a
globalização, seus procedimentos, injustiças, cafonices, falsos benefícios,
shoppings, impessoalidade e solidões. De modo que estou feliz por encontrar em
Ribeiro Cruz um cúmplice talentoso e disposto a não fazer concessões a
mentirinhas ou meias-verdades complacentes e confortáveis.
Há nesse cenário um pouco de Paraíso?
Sim, claro que há, mas ele não está desprovido da indissociável (e literal)
Serpente, como se verá no conto “O retorno do cavaleiro andante”, onde um
passeio de bicicleta de amigos, que vão caçar rãs numa Lagoa dos Cavalos,
transborda em lirismo descritivo da fauna e flora regionais, mas é subitamente
invadido por um senso trágico de realidade, que passeio juvenil algum jamais
poderá abolir. As cidades podem oferecer ainda, em suas cercanias rurais,
alguma ilusão de passado bucólico, mas oferecem sobretudo “vilinhas verticais”
onde personagens como os de “A procura” e “Notas da solidão”, que vão se
afundando em isolamento ou relações falsificadas a ponto de chegarem ao delírio
ou a se ensimesmarem para sempre em suas pequenas vidas. Nesses prédios
(gabados pelos bairristas deslumbrados, que neles veem a feliz realização
“caipira” do sonho metropolitano) o que há são solidões contíguas, vidas que se
perdem e se anulam, sonhos para sempre sepultados entre um corredor escuro e
outro.
Tenho que destacar um conto que, a meu
ver, retrata muito do que vai pelo ar dessas cidades (e talvez de todo o país).
É esse exemplar “Canção noturna”, dueto de mãe e filha evangélicas que retrata
tanto a repressão sexual que é feita em nome de ideias do Velho Testamento e pregada
por pastores interesseiros quanto a verdade universal de que o reprimido não
poderá permanecer indefinidamente como tal. Ribeiro Cruz resolve isso captando
essas duas vidas, de Marlene e sua mãe, dona Eurides. Já houve entre elas um
Romero pai, mas as deixou – era um desses desertores meio patéticos e
macunaímicos que, por causa de sonhos nada comuns e uma vontade irresistível de
reverter a “normalidade”, parecem atrair Ribeiro Cruz e valer sua simpatia (veremos
isso no comovente “Tio Valdim” e no peão Orosmindo, com seu périplo de Minas a
Sertãozinho e sua vontade de não ficar em parte alguma). As duas vivem entre
rezas e mortificações, até que um dia a mãe amanhece cantando “A camisola do
dia”, de Nelson Gonçalves. E virá ainda a debochada “Meu vício é você”, e,
claro, Nelson era na certa um ídolo do pai. A canção noturna, feita para o
desnorteio, as obceca, e a figura do pai ganha o contorno de uma salvação pelo
escape dionisíaco.
Esta, garanto, é mesmo uma estreia
promissora, porque encontrar contos com essa profundeza em livros de estreantes
não é tão comum assim. Ribeiro Cruz parece nos oferecer um determinado
microcosmo, que conhece muito bem, e dentro dele se move com uma desenvoltura
de veterano, lembrando Rosa, Faulkner e outros escritores que captaram, no grão
particular e na linguagem regionalizada, algo que vai muito além do pitoresco
regional ou dos cartões postais de cidades que gostariam de ser vistas pelo que
não são.
Chico Lopes é escritor em vários gêneros (conto, poesia, romance, ensaio) e também tradutor de ficção em Inglês. Tem publicados três livros de contos, dois romances, dois livros de poesia, dois livros de ensaios e um de memórias. Seu romance de estreia, O estranho no corredor, recebeu um Jabuti em 2012. É também pintor e pratica o jornalismo cultural escrevendo sobre livros e cinema.
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