"A
monareta tá pronta na oficina", o Zé da Magrela despachou
aviso de cima da barra-circular,
sem esbarrar velocidade, pedalando embalado, que a hora de abrir a
bicicletaria depois do almoço passava, 'eita! dia de dobradinha em
casa a gente enche o bucho e alarga a sesta'. Diguim, de cócoras na
calçada, martelava uma lata de óleo com vidro de lâmpada queimada
dentro, melhor não tinha pra deixar o cerol fininho que, só de dar
relo em linha, cortava. Ouvindo de soslaio, sem levantar cabeça, e
mantendo ritmo do martelo, tomado escondido na caixa de ferramentas,
ele soltou a voz mal afinada, "já passo de lá, Zé".
Tinha uma vergonha disfarçada da monareta azul 1973; era bicicleta
doutra década. E a molecada agora andava era no modelo bicicross,
bmx
da monark, ou caloicross,
a crozinha, que algum primeiro pai da vizinhança tinha comprado no
carnê de prestações pra exibir o de melhor que podia dar ao filho,
e acabou contaminando os desejos de moleques, cujos pais não podiam
engolir o despeito dos outros, enfim, as crozinhas se multiplicavam
no bairro assim como as dívidas, os bicos e os esforços pra não
dever mais na praça.
Diguim
ia até as últimas consequências pra defender a dignidade de sua
'bici de véio'; primeiro o argumento falado e cuspido, empréstimo
ao pai, "essa é uma jet
black,
um clássico! paralamas e cobre-corrente cromada, garupeira e banco
anatômico", quanto esforço pra decorar as qualidades! mas
quando as gargalhadas ainda insistiam no 'bici de véio', ele chamava
pro desafio, uma corrida em volta do quarteirão, que ainda não
tinha asfalto, pra provar que trem novo não resolve o lado de
ninguém. Então a prova que tinha de se dar era concreta, pelo que
ele não poupava os gambitos e todo fôlego e toda estratégia, uma
fechada de leve pra jogar o oponente em cima da kombi do Mirão,
quando esta estava no ponto perto da esquina aguardando frete, ou até
mesmo uma bicuda discreta de lado, quando as bicicletas emparelhadas
— era bico e queda.
Diguim
não se sentia no direito de amostrar vergonha, afinal a monareta era
orgulho de primeira conquista de pai pra filho. Seu Jurandir tinha
feito muita hora extra na panificadora Guidoni pra conseguir comprar
a bicicleta de segunda mão, quase nova. Isso já fazia uns pares de
anos, quando o filho era apenas um bebê, e o padeiro Jura, enquanto
pedalava o presente muito antecipado, imaginava o menino crescido,
montando aquela belezura e descobrindo o equilíbrio, sem rodinha,
"meu filho não vai ser mole",
tão logo figurando a calanga dominada pra rodar com prazer de
menino. Posto, portanto, Diguim soubesse o valor de agradar o pai,
nunca executou o desaforo ensaiado de pedir outra nova, quanto mais
ao ouvir dia-sim-dia-não "meu filho, essa menina aí é
companheira pra vida toda; é só cuidar". E zelo não faltava:
a cada dois meses a monareta ia pra manutenção no carimbado Zé da
Magrela, pra fins de lavar e engraxar a corrente, trocar um ou outro
raio, tirar o jogo dos aros e regular os freios. Sem contar que toda
sexta o garoto lavava e encerava a relíquia, além de não deixar
passar a noite no sereno, sempre guardada num canto da sala, não
facilitando também pra ladrãozinho que entrasse em quintal de
madrugada. "Rodrigo, vem comer que já tá frio", o grito
da mãe interrompeu o bate-que-bate tanto na lata quanto na caixola
de recordar, 'não posso ser um ingrato', e lá foi devorar o arroz,
feijão, angu e ovo com o apetite comum às consciências tranquilas.
"Ah,
espia que esse breque tá tinindo, Diguim! É só triscar o manete,
ó. E dá uma olhada cá no giro da roda; nada de jogo. Também fiz
um agrado: limpa-raio de macarrãozinho colorido. Seu Jura, seu pai,
vai fazer gosto!", Zé da Magrela exibia o orgulho do serviço
na monareta virada de borco sobre um encerado, "pra não
arranhar guidão e banco", e fazia questão de que o moleque
guardasse relato detalhado pra contentar o cliente antigo e fiel.
Ao
dobrar a esquina, ele avistou o rebu de bicis em frente a sua casa, o
trio de amigos atinados em bando: o Pioio ensaiando empinada, roda da
frente pra cima, o Nicão testando abrupto o freio da frente, pra
cima co'a roda de trás, o Corneta deitando curvas num oito
imaginário. Quando firmaram vista na aproximação dele, "aê,
Diguim, chegaí!", "a gente tava t'esperando", "bora
pra lagoa caçar". Dezembro de águas fartas, a também chamada
Lagoa dos Cavalos de certo estava vertendo pelas beiradas pra regar
brejos, tempo bom pra caçar rã, peixinho mato-grosso e cará de
topete. Diguim constatou que a trupe já trazia mochila com a tralha
nas costas, com estilingue, bolas-de-gude (tipo biloca miúda) e
pedras-castelo bem escolhidas, sacolinha de mercado, cantil, um
punhado de restos de farinha e grãos pra cevar. No susto, ele
apressou buscar seus pertences, mas fugindo à escuta da mãe, que
lavava roupa no tanque, com receio de que ela frustrasse o ensejo da
aventura.
O
sol estava de apertar os olhos, e a umidade do verão, chovera a
noite toda, fazia da tarde um bafo quente sufocante. Eles saíram do
Jardim Jamaica, atravessaram a Cohab 7, divisaram a antiga chaminé,
no limite da cidade, e após cruzar o elevado da linha do trem,
seguiram por um braço de trilha até a estrada da lagoa, que
contornavam a fim de alcançar o ponto mais palatável das águas.
Não estava fácil pedalar buscando a terra mais firme em meio às
escamas de lama mole deixadas por caminhões. Se passassem ali há
uns vinte dias, ainda seriam ladeados pelo mar de cana, mas o corte
acontecera, então só se viam os desenhos curvilíneos recobertos de
palha seca, onde rebrotaria a cana-soca. Diguim achou até bom não
ter cana, pois não veria Pioio se comprazendo com matança das
avoantes, aquelas tadinhas de arribação, que ele justificava matar
pra comer, "minha mãe deixa igualzim carne de codorna",
mas o gosto mesmo era testar mira no alvo vivo, acertando quantas
possível, muita vez deixando várias agonizantes pra trás. O
Corneta ia no embalo, pra provar destreza no estilingue, até acertar
uma e ficar com dó, no que pedia pro Pioio buscar a caça ou pedia
perdão pra Deus por tirar vida de criação inocente. Por isso
Diguim sempre levava uma latinha vazia de massa-de-tomate pra ele e o
Nicão brincarem tiro sobre um mourão de cerca enquanto Pioio tocava
a malvadeza.
Mas
nesse dia não tinha motivo pra parar, nenhum teiú na estrada que
dispusesse rastro veloz de distração, nenhuma cana pra partir na
coxa e sugar caldo. Àquela hora, ainda o tempo firme, no céu acima
deles apenas uma ou outra nuvenzinha esgarçada, tímidas em oferecer
qualquer tiquinho de sombra. As nuvens polpudas anunciavam-se num dos
flancos do horizonte, coisa mais pro fim da tarde. Como de costume,
eles amarravam a camiseta na cabeça, como réplicas de turbante,
menos o Corneta, que tinha tanta vergonha dos peitos e mamilos
salientes a ponto de nadar sem tirar camisa. Pioio sempre ia na
frente, queria enxergar o que fosse de novo primeiro, sedento de
gritar alardes mesmo sem mote — era do seu feitio sentir-se
sobranceiro, no caminho e também sobre os demais, "ô Nicão,
já foi visitar a dama do ferro-velho?", e ninguém via graça
além dele, "melhor o rei da sucata que o pudim de pinga, né
não?", continuava no deboche à frente. Os outros três
revezavam posições, ora em par, ora em fila, ora o trio alinhado,
sem disputar besteira da dianteira. O Nicão preferia seguir lento e
constante, concentrado quieto, como mansa segurança do bando. Ele
que morava só com o pai, cuidando todo dia de buscá-lo no bar,
caindo de cachaça, homem perdido depois que a mulher fora embora com
o dono dum desmanche de carros. O pai do Nicão tivera emprego
cobiçado, era encarregado de eletricistas num setor da Zanini, onde
conseguiu emprego aos catorze anos. Nunca teve cabeça pra investir o
salário e, com a perda de mulher, a pinga acabou de lhe tirar tudo.
Sem o emprego, passou a fazer bicos, puxando gatos de energia,
instalando ventiladores, consertando chuveiros e outros serviços
miúdos, cujo pagamento incerto ficava todo no bar e nas apostas de
truco. O aluguel da casa vários meses atrasado, motivando uma ação
de despejo, e o Nicão, arrimo de pai bêbado, começou a trabalhar
no lava-jato do Nero a fim de, pelo menos, comprar comida e evitar a
suspensão de energia e água em casa. Mas era uma quarta-feira,
movimento fraco, só dois carros pra lavar, e o patrão disse que ele
não precisava voltar depois do almoço. Só assim pro Nicão
juntar-se ao quarteto novamente, e sua presença os deixava
tranquilos, porque sabiam da força e habilidade que ele não exibia
à toa. Era ele quem achava as melhores forquilhas, quem afinava a
melhor vareta pras pipas, hábil no fio da faca e preciso na força
justa.
Enfim
avistaram a taboa recobrindo o brejo ao redor e, pelo meio das águas,
as manchas dos aguapés, que já tomavam boa parte da lagoa. Foi hora
de deitar as bicicletas numas touceiras pra explorar águas. O Pioio
instigava alvissareiro a busca de rã-pimenta, gordotas vermelhas com
tempero embutido por natureza, "de lamber os beiços",
dizia estalando a língua. Mas carecia encontrar difíceis
esconderijos, pois as bichinhas saíam mesmo à noite. Diguim não
queria saber de rã. Horror ao ter visto uma sendo frita na panela de
dona Izildrina, mãe do Pioio. A rã estrebuchava as patinhas como se
ainda viva, sofrendo suplício. Ele não conseguiu experimentar a
iguaria e teve que aguentar o riso desaforado de mãe e filho. A
saber, então, que o interesse de Diguim nas águas era providenciar
peixinhos. No penúltimo natal o pai lhe deu um aquário pequeno;
mandou cortar os vidros, arrumou cola de silicone com uma colega
encanador e comprou um motorzinho-bomba recondicionado. "Aquário
não é coisa só de rico", meu filho. Contudo, o menino
descobriu que não era tão fácil regular a água pros peixes.
Também não sabia que ela deveria descansar, maturando uma colônia
invisível, antes de receber as cores de nadadeiras e barbatanas.
Pois quando trouxeram, afoitos, uma dúzia do mercado municipal de
Ribeirão Preto — quatro paulistinhas, casal de colisa, tetra e
molinésia, além dum cascudinho e um beijador, todos debatendo cores
no saquinho plástico — tão só o rasteiro cascudo sobreviveu
depois de apenas uma semana. A partir de então, seu Jura afirmou não
rasgar mais dinheiro com bicho frágil, e se Diguim quisesse o
aquário vivo, que fosse buscar peixinho em lagoa e açude. E
ultimamente a caixa de vidro andava vazia, depois da morte dum cará
que crescera além do esperado, tomando conta do espaço todo. Era o
Caolho — o peixe tinha sobrevivido ao fungo do algodão-branco, mas
acabou ficando sem um olho, apenas restando a concavidade cinzenta e
oca. Caolho reinou absoluto e solitário até morrer de velhice. Mas
Diguim pressentira o momento de repovoar o aquário, por isso o vidro
já cheio, decorado com pedaço de tronco e uma lasca de pedra
mineira achada entre as sobras duma construção.
Mas
a Lagoa dos Cavalos não ofereceu peixe. Mesmo cevando os cantinhos
corretos e arrumando com esmero a armadilha de cano PVC, Diguim não
pegou nada. Pioio alardeou a primeira rã, "essa vale uma coxa
de frango!", e o Corneta acudia curiosidade, levando rápido o
saco de cebola onde guardar a caça. Nicão sentou-se ao pé duma
árvore sangra d'água e tirou do embornal um toquinho roliço e o
canivete, "vou talhar um apito". Diguim então mudou de
posto, tentou de todo jeito onde sabia esconderijo de alevinos, e
nada. Por fim decidiu,
"tô
subindo lá pro Trianguim, no Engenho Central; alguém vai comigo?",
"cê
endoidou, Diguim?",
"tudo
isso é preguiça de pedalar meia horinha?",
"mas
olha esse sol rachando", "e aqui tá recheado de rã! larga
mão dessa bobeia de peixinho pra enfeite",
"podem
ficar qu'eu vou sozinho".
Viu
o Nicão ainda coçar a cabeça, meio indeciso, mas não enrolou
espera. Pegou a monareta e rumou caminho.
Não
tinha tino de chefia. Fosse mais paciente com traquejo de argumento,
quem sabe oferecendo de agrado uns cromos mais raros do campeonato
brasileiro, talvez tivesse companhia. Mas era bom pedalar sozinho e
seguir por conta. O pneu sulcando tenaz a terra, o farfalhar dos
canudinhos nos raios, a sensação de abrir um vácuo na tarde como
se qualquer desejo pudesse ser submetido à força das pernas — a
liberdade de girar uma decisão de repente, sem impedimentos. Não
levava relógio, mas calculou que, mantido o ritmo, em hora e meia
daria tempo de ir-e-voltar, com os peixinhos de alegria. Por isso
apagou qualquer distração e fechou o foco na estrada, seguindo,
fronte altiva, a linha vermelha.
Não
tardou cruzar o mata-burro, marcando os limites do velho engenho, e
avistar as três lagoas formadoras do Trianguim. Desceu a
trilhazinha, ninguém nas redondezas, melhor assim, só tombar a
bicicleta numa moita. Arrumou animado a armadilha, providenciou uma
mistura de ceva, era hora de valer a tarde: quem sabe um punhado de
matos-grossos, mas não descartaria também lambaris.
Quando
se agachou na beira pra arrumar a tralha, o pavor! Do barranco
oposto, saindo duma touceira e escorregando, sinuosa, um absurdo
longilíneo, verde-escuro-mosqueado, uma sucuri. Na água barrenta,
Diguim acompanhou, ainda sem reação, o movimento ágil, mas sutil,
daquele bicho que diziam engolir bezerros e meninos. O pavor. Coração
na boca, largou tudo pra trás, arrastou desembalado a monareta até
chegar na estrada e saiu pedalando sem encostar bunda no selim.
Péssima
ideia andar sozinho praqueles lados. Péssima hora pra decidir
iniciativas. Sabia que a sucuri estava longe, ameaça remota, mas o
pior era não ter com quem dividir desespero. Nem gargalhar de
nervoso faria sentido. Sentiu-se um reles moleque medroso. Não era
do feitio pra mato. Se tivesse apenas avoante e rã pra comer, apenas
esses bichos tão disponíveis, ele morreria de fome. Não passava de
um fraco. Uma farsa; sim, uma farsa sua habilidade com a bicicleta,
pois de nada adiantava chegar primeiro se não cumprisse outra
qualquer finalidade. De certo o Pioio perseguiria o animal; esse não
tinha frouxidão, melindre, frescura — nascido caçador. O caminho
de volta só fez pesar o sentimento de vergonha e derrota. Começou a
escolher mal os desvãos na terra, patinando as rodas em sulcos
lisos, vez ou outra tendo que apoiar um pé no barro pra não cair.
Os companheiros de meia-viagem ainda estariam lá, aguardando? Como
justificar o retorno de mãos vazias?
Chegou
à Lagoa dos Cavalos, e tudo era um quase silêncio. Pensou em seguir
na estrada sem esbarrar, mas, por desencargo, entrou pela trilha do
matagal que conduzia ao ponto onde os amigos ficaram. Vislumbrou
algum movimento: era o Corneta, com a bicicleta, na capoeira,
desenhando curvas num oito imaginário. Não teve reação com a
chegada de Diguim, "Corneta, cadê os dois?", mas ele surdo
e calado, cabeça baixa, total absorto no oito imaginário. Então
ele avistou figuras, debaixo da árvore sangra d'água. Acudiu com a
monareta, aproximando-se, pra entender visão. Pioio estendido, a
garganta aberta de fora a fora, num talho cirúrgico, o peito
empapado de melaço vivo e rubro. Ao lado, Nicão de joelhos, o
canivete ainda na mão, enquanto o olhar se erguia em súplica,
"Diguim, ele não tinha o direito..."
2 comentários:
Parabéns Artur. Gostei da leitura. Abração
Obrigado, amigo! Saudades de você.
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