domingo, 13 de dezembro de 2015

Os pactários da linguagem: 30 anos da minissérie Grande Sertão Veredas








Há 30 anos (entre 18 de novembro e 20 de dezembro de 1985), exibia-se a minissérie Grande Sertão: veredas, um marco da televisão brasileira. Como escrevi num artigo de 2008 - A jagunçagem no mercado -, foi uma travessia e tanto de Walter Avancini e Walter George Durst em adaptar o sertão-mundo do romance rosiano para os limites do meio televisivo. Nesse texto apontei, sobretudo, a dificuldade de acesso à minissérie. Na época, o canal youtube não oferecia todos os capítulos e a Globo também não tinha lançado a obra em DVD. Mandei um email pra Globo Marcas ressaltando o interesse na remasterização da minissérie e me responderam que tal empreita já estava em andamento. Mas só em 2010 houve o lançamento em 4 DVDs, com pequenos cortes.


Meu interesse pela minissérie me faz todos os anos refletir sobre alguns aspectos dessa narrativa seminal. Há muito, muito mesmo, a explorar. Desde a trilha composta pelo maestro Júlio Medaglia, que teve êxito em amalgamar música erudita e elementos da música de raiz, com rica variação harmônica e de tonalidade a partir do mesmo tema; passando pela composição dos personagens, com tal trabalho de imersão no ambiente sertanejo que os levou a desenvolver uma prosódia nunca ouvida antes na televisão; sem falar de todo o trabalho apurado de produção (figurinos, cenários, técnicas de filmagem e edição, entre outros). 


Quanto ao processo de adaptação de linguagem literária pra cinematográfica, um universo se instaura. Tendo em vista que narrativa é tempo, há um diálogo muito profícuo entre a voz narrativa do romance (o monólogo/diálogo irônico de Riobaldo) e a construção do tempo no meio audiovisual. Também há que se destacar o trabalho com os elementos simbólicos, principalmente a transformação dos significantes que constroem os sentidos metafísico-religiosos. 


O leitor pode pensar que a minissérie seja chata, hermética, coisa de intelectual. Nada disso. Embora as minisséries sejam produtos mais refinados da emissora, que destoam da pasteurização de boa parte das novelas, essas produções também prezam pela audiência e sua inteligibilidade. A minissérie Grande Sertão: veredas foi um dos grandes sucessos de público da rede Globo e, na época, foi divulgada como "a maior produção de todos os tempos da tv mundial". E agradou todos os públicos, de letrados a espectadores que nunca leram uma linha sequer de Guimarães Rosa. Aliás, diga-se de passagem que o próprio Rosa, quando questionado sobre a dificuldade de leitura de seus textos, comentou  que o segredo era ler em voz alta, então se poderia ouvir uma tia mineira ou um contador de causos conduzindo a história.


Contudo, tenho me debruçado ultimamente sobre um aspecto mais amplo a respeito da adaptação. O ponto de partida de minha reflexão incipiente é um estudo de Willi Bolle, grandesertão.br (Editora 34), sobre o romance Grande Sertão: Veredas. Bolle defende a tese de que esse romance é "o mais detalhado estudo de um dos problemas cruciais do país: a falta de entendimento entre a classe dominante e as classes populares, o que constitui um sério obstáculo para a verdadeira emancipação do país". Bolle propõe que a obra seja compreendida como "romance de formação", não no sentido convencional, mas sim como reinvenção do paradigma iniciado por Goethe, como um "romance de invenção do Brasil".


Na análise refinada de Bolle, em que são trazidos ao jogo interpretativo  Os Sertões, de Euclides da Cunha, e as obras fundadoras de nossa sociologia, o ensaísta demonstra que a obra de Rosa instaura um retrato de "nação dilacerada", em que o pseudodiálogo entre o narrador sertanejo, fazendeiro estabelecido, e um interlocutor letrado (na verdade, um monólogo imenso) constitui "uma encenação irônica, com papéis invertidos, da falta de diálogo entre as classes sociais" (p. 385). O pacto com o Diabo é lido como separação, isto é, o jagunço Riobaldo torna-se pactário não apenas para vencer o também pactário Hermógenes, mas para ascender à classe dominante por meio da assunção do poder. Bolle explica o diabolos, em termos etimológicos, como "entidade que se interpõe entre as pessoas, entre as classes". A trajetória de Riobaldo, contada mediante um componente diabólico na própria linguagem, o texto difícil, representa os meandros da "lei fundadora do país", um falso contrato social que institui a ordem legal vigente e que mantém a desigualdade de bens e propriedade no Brasil. 


Entendo que a minissérie Grande Sertão: Veredas constitui uma releitura artística que transfigura problemas que permearam a abertura política e a redemocratização do país em meados da década de 1980. Nesse sentido, tenho procurado ler a obra televisiva tendo como eixo a figura do 'pacto com o Diabo' em várias camadas de análise, ainda por explorar:


1) O processo de reabertura política, em cujo contexto histórico-social estão inseridas a produção e a exibição da minissérie, pode ser compreendido como pacto demoníaco, isto é, um falso pacto social, pois o retorno à democracia manteve o poder nas mãos de clãs familiares, cujos chefes veem o Estado como extensão de sua propriedade. Nesse sentido, há o desafio de relacionar estudos sobre o romance com a tese de Bolle para, finalmente, compreender de que modo a narrativa televisiva transforma conteúdos da realidade social em elementos estéticos internos à obra.


2) A tensão dialética implicada na figura do 'pacto diabólico' pode conduzir o leitor/espectador através da análise do processo de adaptação empreendido por Walter Avancini e Walter George Durst, a priori, nos seguintes aspectos:

a) A ação dos diretores ao idealizarem um roteiro adaptado do romance e, ainda, ao persuadirem a direção da emissora a levar adiante o projeto "de maior produção em vídeo em todo o mundo". Feito o pacto, foi necessário munir-se de todo o aparato da emissora, com ampla divulgação também na imprensa, pra que os gastos exorbitantes com a produção fossem compensados pela audiência.

b) O conflito entre o padrão de dramaturgia da emissora, somado às características peculiares ao meio televisivo, e a empreitada de renovação do gênero e de trabalho criativo e autoral.

c) O desafio de conduzir uma enorme equipe e recursos grandiosos (300 funcionários, mais de 2000 figurantes, 2000 cavalos, entre outros números impressionantes) durante 3 meses de filmagens em locações praticamente isoladas no sertão de Minas — entendo que tal empreitada dialoga com a travessia do Liso do Sussuarão, no romance. 

d) A relação entre os idealizadores do projeto e os moradores de Paredão de Minas, escolhida como base de trabalho e ambiente de filmagem da batalha final; houve o acordo de promover melhorias no local, mas o resultado foi apenas uma encenação desse acordo.

e) Por fim, a conquista de tornar a adaptação da obra de Rosa inteligível ao grande público e, ao mesmo tempo, renovar a linguagem da teledramaturgia brasileira. Além disso, ressalta-se o problema da distribuição da obra, que teve difícil acesso por vários anos até sua disponibilização clandestina na internet e, finalmente, o lançamento da versão em DVD em 2010.


Enfim, penso que meu interesse no estudo dessas obras que tanto prezo não se esgotará tão cedo. Espero que o interesse do leitor também se desperte, tanto pelo romance quanto pela minissérie. O pacto está selado. Travessia.

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