Paris em fins do século XIX. Lisboa nas primeiras décadas do século XX.
São Paulo na transição para o século XXI. O que poderia haver de (in)comum
entre tais épocas e lugares? A resposta irrompe em discursos que, apesar de
marginais em seus respectivos contextos históricos, atingem o centro das
inquietações sobre a experiência vivenciada nas cidades modernas. O objetivo
deste trabalho é construir vias de acesso entre os discursos de três artistas
em momentos distintos da evolução das sociedades capitalistas industriais e
pós-industriais.
O primeiro artista em quem nos inspiramos é o escritor francês do século
XIX Charles Baudelaire, cujas obras Flores
do Mal e Pequenos Poemas em Prosa
são precursoras na representação poética das contradições urbanas. O segundo, o
modernista português Fernando Pessoa, em seu Livro do Desassossego constrói uma visão
particular da cidade a partir dos contrastes entre o espaço habitado de Lisboa
e o cenário psicológico aos olhos do semi-heterônimo Bernardo Soares. O
terceiro inspirador do trabalho é o grupo de rap paulistano Racionais MC’s, que
despontou no final da década de 1980 e ganhou reconhecimento com músicas que
denunciam a realidade de exclusão, miséria e violência da periferia de São
Paulo.
Buscamos nessas representações encontrar as confluências que traduzem os
sentimentos de fascínio e repulsa, ansiedade e tédio, indiferença e compaixão
compartilhados pela multidão heterogênea, mas ao mesmo tempo tão uniforme, que
ocupa os centros urbanos. A fragmentação com que os espaços, as falas e os sons
são construídos no palco tem como intuito refletir a própria fragmentação da
experiência, o conflito, e a multiplicidade identitária que hoje marcam as
cidades.
Visões
e Vozes da Cidade
Seleção, adaptação e montagem: Artur Ribeiro Cruz
Texto adaptado das obras de:
Charles Baudelaire – Pequenos poemas em prosa
Fernando Pessoa – O livro do desassossego
Racionais Mc’s – Nego
Drama; A vida é desafio
[O espaço
cênico é dividido em duas partes por uma rua que o atravessa em sentido
longitudinal. De um lado, um bistrô, no qual se destaca uma mesinha com um jogo
de chá; do outro, um ambiente caótico onde se misturam pneus, carcaças de
computadores e lixo eletrônico (monitores, CPUs, teclados, cabos etc) e um painel
grafitado. Ao fundo, uma projeção do poema "Póstudo", de Augusto de
Campos.]
Figurinos:
Fernando
Pessoa: terno escuro, gravata borboleta e chapéu coco.
Charles
Baudelaire: fraque e cartola.
Rappers:
roupas largas, boné e/ou bandana, no estilo hip-hop.
ABERTURA: performance
de dança
Coreografia do poema "Cidade/City/Cité".
Movimentos que configuram o caos e a fragmentação da experiência urbana.
CENA
(fundo
musical: The poet acts/ Phillip Glass)
Rapper 1: O pintor
da vida moderna é, antes de mais, um ser urbano.
Rapper 2: grande
amante da multidão e do desconhecido.
Baudelaire: que mergulha
na multidão como num imenso mar de imagem e som.
F. Pessoa: como um
espelho tão imenso quanto esta multidão.
Rapper 1: como um
caleidoscópio dotado de consciência.
Baudelaire: Passageiros do Brasil, São Paulo, agonia
Que sobrevivem em meio à zona e covardias.
F. Pessoa: Periferias, vielas e cortiços,
Você deve estar pensando: o que você tem a ver com isso? Ouça!
Rapper 2: Ouço,
filtrados pela minha desatenção, os ruídos que sobem, fluidos e dispersos, como
ondas ao acaso e, de fora, como se viessem de outro mundo:
Rapper 1: os gritos
de vendedores, que vendem o natural, como hortaliças, ou o social, como o medo
e a desconfiança;
Rapper 2: o riscar
redondo de rodas — carroças e carros rápidos por saltos —; automóveis, mais
ouvidos no movimento que no giro;
Rapper 1: o tal
sacudir de qualquer pano em qualquer janela; o assobio do garoto; a gargalhada
do andar de cima;
Rapper 2: o gemido
metálico do bonde elétrico na outra rua; o que de misturado emerge do
transversal; subidas, baixas, silêncios do variado; trovões trôpegos do
transporte; alguns passos; princípios, meios, e fins de vozes.
Baudelaire: E ouço
uma outra voz...
Daria um filme: uma negra e uma criança nos braços,
Solitária na floresta de concreto e aço,
Veja, olha outra vez o rosto na multidão,
A multidão é um monstro sem rosto e coração,
Hey, São Paulo, terra de arranha-céu,
A garoa rasga a carne, é a Torre de Babel.
Família brasileira, dois contra o mundo,
Mãe solteira de um promissor vagabundo.
Luz, câmera e ação, gravando! A cena vai:
O bastardo, mais um filho pardo, sem pai.
F. Pessoa: Histórias, registros, escritos,
Não é conto nem fábula, lenda ou mito.
Não foi sempre dito que preto não tem vez?
Então olha o castelo: não foi você quem fez?
Baudelaire: Desde o início, por ouro e prata,
Olha quem morre, então veja você quem mata.
F. Pessoa: Recebe o mérito a farda que pratica o mal,
Me vê pobre, preso ou morto, já é cultural.
Rapper 1: Uns
governam o mundo,
Rapper 2: outros
são o mundo.
Rapper 1: Entre um
milionário americano, com bens na Inglaterra ou Suíça, e o chefe socialista da
aldeia — não há diferença de qualidade,
Rapper 2: mas
apenas de quantidade! E abaixo destes, nós, o povo sem forma.
Rapper 1: Tal como
dramaturgo atrapalhado William Shakespeare,
Rapper 2: ou o
professor John Milton,
Rapper 1: o vadio
Dante Alighieri,
Rapper 2: o moço de
entregas que me trouxe ontem um recado,
Rapper 1: ou o
barbeiro que me conta piadas.
Baudelaire: Mundo moderno, as pessoas realmente não se falam
Ao contrário, se calam, se pisam, se traem, se matam...
F. Pessoa: Embaralho as cartas da inveja e da traição
Copa, ouro e uma espada na mão
Baudelaire: Conheci o paraíso e conheço também o inferno
Fernando Pessoa: Vi Jesus em trajes de pobre e o diabo vestido de terno
Baudelaire: O que é bom é pra si
E o que sobra é do outro
F. Pessoa: Igual ao sol que aquece
Mas que também apodrece o esgoto
Rapper 1: Calor e
esgoto. Tenho a náusea física da humanidade vulgar, que é, aliás, a única que
há. E capricho, às vezes, em aprofundar essa náusea, como se pode provocar um
vômito para aliviar a vontade de vomitar.
Rapper 2: E tudo
quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um
transeunte a menos no cotidiano de ruas de uma cidade qualquer.
Baudelaire: Irrita-me
a felicidade falsa de todos estes homens que não sabem que são infelizes. A sua
vida humana é cheia de uma série de angústias fúteis para uma sensibilidade
verdadeira.
Rapper
2:
Todo o mistério do mundo desce até meus olhos esculpindo-se em banalidade e
rua. Ah, como as coisas cotidianas roçam mistérios por nós! A hora, sorriso incerto,
sobe aos lábios do Mistério! Que moderno que tudo isto soa! E, no fundo tão antigo,
tão oculto.
Rapper 1: E não são
as paredes reles do meu quarto vulgar, nem as secretárias velhas do escritório
alheio, nem a pobreza das ruas sujas do centro velho, tantas vezes por mim
percorridas, que já me que formam no espírito a náusea do cotidiano
enxovalhante da vida.
F. Pessoa: E não sabemos a razão
desse sentimento de prisão?
Rapper 1: São as pessoas que habitualmente
me cercam, são as almas que, desconhecendo-me, todos os dias me conhecem com o
convívio e a fala, que me põem na garganta do espírito o nó salivar do desgosto
físico.
Rapper 2: É a sordidez monótona da sua
vida, paralela à exterioridade da minha, é a sua consciência íntima de serem
meus semelhantes, que me veste o traje de forçado, me dá a cela de
penitenciário, me faz mascarado e mendigo.
F. Pessoa: É muito louco olhar as pessoas
A atitude do mal influencia a minoria boa
Baudelaire: A vida voa e o futuro pega
Quem se firmou, falou
Quem não ganhou, o jogo entrega
F. Pessoa: Mais uma queda em 15 milhões
Nas mais ricas metrópoles, suas várias contradições
Baudelaire: É incontável,
Rapper 1: implacável,
Rapper 2: inaceitável
F. Pessoa: Ver o lado miserável se sujeitando com migalhas e favores
Se esquivando entre a noite de medo e horrores
Baudelaire: Qual é então a fita, a treta, a cena?
Todos: A gente reza, foge, finge, disfarça, mas continuam sempre os mesmos problemas!
Rapper 1: E, em meio de tudo isto, vou pela
rua afora, dorminhoco da minha vagabundagem-folha. Qualquer vento lento me
varreu do solo, e erro, como um fim de crepúsculo, entre os acontecimentos da
paisagem. Pesam-me as pálpebras nos pés arrastados pelas ruas.
Rapper 2: Meu
passeio calado é uma conversa contínua, e todos nós, homens, mulheres, casas,
pedras, cartazes e céu, somos uma grande multidão amiga e inimiga,
acotovelando-se de palavras na grande procissão do destino. Mas então me pergunto:
somos reféns do destino ou criamos o mundo com nossas escolhas?
Todos: E súbito, de aço, um dia infinito
estilhaçou-se... (som de explosão)
FIM
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