sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

VISÕES E VOZES DA CIDADE




Paris em fins do século XIX. Lisboa nas primeiras décadas do século XX. São Paulo na transição para o século XXI. O que poderia haver de (in)comum entre tais épocas e lugares? A resposta irrompe em discursos que, apesar de marginais em seus respectivos contextos históricos, atingem o centro das inquietações sobre a experiência vivenciada nas cidades modernas. O objetivo deste trabalho é construir vias de acesso entre os discursos de três artistas em momentos distintos da evolução das sociedades capitalistas industriais e pós-industriais.
O primeiro artista em quem nos inspiramos é o escritor francês do século XIX Charles Baudelaire, cujas obras Flores do Mal e Pequenos Poemas em Prosa são precursoras na representação poética das contradições urbanas. O segundo, o modernista português Fernando Pessoa, em seu Livro do Desassossego constrói uma visão particular da cidade a partir dos contrastes entre o espaço habitado de Lisboa e o cenário psicológico aos olhos do semi-heterônimo Bernardo Soares. O terceiro inspirador do trabalho é o grupo de rap paulistano Racionais MC’s, que despontou no final da década de 1980 e ganhou reconhecimento com músicas que denunciam a realidade de exclusão, miséria e violência da periferia de São Paulo.
Buscamos nessas representações encontrar as confluências que traduzem os sentimentos de fascínio e repulsa, ansiedade e tédio, indiferença e compaixão compartilhados pela multidão heterogênea, mas ao mesmo tempo tão uniforme, que ocupa os centros urbanos. A fragmentação com que os espaços, as falas e os sons são construídos no palco tem como intuito refletir a própria fragmentação da experiência, o conflito, e a multiplicidade identitária que hoje marcam as cidades.


Visões e Vozes da Cidade


Seleção, adaptação e montagem: Artur Ribeiro Cruz

Texto adaptado das obras de:
Charles Baudelaire – Pequenos poemas em prosa
Fernando Pessoa – O livro do desassossego
Racionais Mc’s – Nego Drama; A vida é desafio

[O espaço cênico é dividido em duas partes por uma rua que o atravessa em sentido longitudinal. De um lado, um bistrô, no qual se destaca uma mesinha com um jogo de chá; do outro, um ambiente caótico onde se misturam pneus, carcaças de computadores e lixo eletrônico (monitores, CPUs, teclados, cabos etc) e um painel grafitado. Ao fundo, uma projeção do poema "Póstudo", de Augusto de Campos.]

Figurinos:
Fernando Pessoa: terno escuro, gravata borboleta e chapéu coco.
Charles Baudelaire: fraque e cartola.
Rappers: roupas largas, boné e/ou bandana, no estilo hip-hop.

ABERTURA: performance de dança

Coreografia do poema "Cidade/City/Cité". Movimentos que configuram o caos e a fragmentação da experiência urbana.

CENA

(fundo musical: The poet acts/  Phillip Glass)

Rapper 1: O pintor da vida moderna é, antes de mais, um ser urbano.

Rapper 2: grande amante da multidão e do desconhecido.

Baudelaire: que mergulha na multidão como num imenso mar de imagem e som.

F. Pessoa: como um espelho tão imenso quanto esta multidão.

Rapper 1: como um caleidoscópio dotado de consciência.
 
Baudelaire: Passageiros do Brasil, São Paulo, agonia 
            Que sobrevivem em meio à zona e covardias.
 
F. Pessoa: Periferias, vielas e cortiços,
           Você deve estar pensando: o que você tem a ver com isso? Ouça!

Rapper 2: Ouço, filtrados pela minha desatenção, os ruídos que sobem, fluidos e dispersos, como ondas ao acaso e, de fora, como se viessem de outro mundo:

Rapper 1: os gritos de vendedores, que vendem o natural, como hortaliças, ou o social, como o medo e a desconfiança;

Rapper 2: o riscar redondo de rodas — carroças e carros rápidos por saltos —; automóveis, mais ouvidos no movimento que no giro;

Rapper 1: o tal sacudir de qualquer pano em qualquer janela; o assobio do garoto; a gargalhada do andar de cima;

Rapper 2: o gemido metálico do bonde elétrico na outra rua; o que de misturado emerge do transversal; subidas, baixas, silêncios do variado; trovões trôpegos do transporte; alguns passos; princípios, meios, e fins de vozes.

Baudelaire: E ouço uma outra voz...
Daria um filme: uma negra e uma criança nos braços,
Solitária na floresta de concreto e aço,
Veja, olha outra vez o rosto na multidão,
A multidão é um monstro sem rosto e coração,
Hey, São Paulo, terra de arranha-céu,
A garoa rasga a carne, é a Torre de Babel.
Família brasileira, dois contra o mundo,
Mãe solteira de um promissor vagabundo.
Luz, câmera e ação, gravando! A cena vai:
O bastardo, mais um filho pardo, sem pai.
 
F. Pessoa: Histórias, registros, escritos,
 
Não é conto nem fábula, lenda ou mito.
 
Não foi sempre dito que preto não tem vez?
 
Então olha o castelo: não foi você quem fez?
 
 
Baudelaire: Desde o início, por ouro e prata,
            Olha quem morre, então veja você quem mata.
 
F. Pessoa: Recebe o mérito a farda que pratica o mal,
           Me vê pobre, preso ou morto, já é cultural.
 
Rapper 1: Uns governam o mundo,

Rapper 2: outros são o mundo.

Rapper 1: Entre um milionário americano, com bens na Inglaterra ou Suíça, e o chefe socialista da aldeia — não há diferença de qualidade,

Rapper 2: mas apenas de quantidade! E abaixo destes, nós, o povo sem forma.

Rapper 1: Tal como dramaturgo atrapalhado William Shakespeare,

Rapper 2: ou o professor John Milton,

Rapper 1: o vadio Dante Alighieri,

Rapper 2: o moço de entregas que me trouxe ontem um recado,

Rapper 1: ou o barbeiro que me conta piadas.
 
Baudelaire: Mundo moderno, as pessoas realmente não se falam 
             Ao contrário, se calam, se pisam, se traem, se matam...
 
F. Pessoa: Embaralho as cartas da inveja e da traição 
           Copa, ouro e uma espada na mão 
 
Baudelaire: Conheci o paraíso e conheço também o inferno
 
Fernando Pessoa: Vi Jesus em trajes de pobre e o diabo vestido de terno
 
Baudelaire: O que é bom é pra si 
            E o que sobra é do outro 

F. Pessoa: Igual ao sol que aquece
           Mas que também apodrece o esgoto

Rapper 1: Calor e esgoto. Tenho a náusea física da humanidade vulgar, que é, aliás, a única que há. E capricho, às vezes, em aprofundar essa náusea, como se pode provocar um vômito para aliviar a vontade de vomitar.
 
Rapper 2: E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos no cotidiano de ruas de uma cidade qualquer.
 
Baudelaire: Irrita-me a felicidade falsa de todos estes homens que não sabem que são infelizes. A sua vida humana é cheia de uma série de angústias fúteis para uma sensibilidade verdadeira.

Rapper 2: Todo o mistério do mundo desce até meus olhos esculpindo-se em banalidade e rua. Ah, como as coisas cotidianas roçam mistérios por nós! A hora, sorriso incerto, sobe aos lábios do Mistério! Que moderno que tudo isto soa! E, no fundo tão antigo, tão oculto.

Rapper 1: E não são as paredes reles do meu quarto vulgar, nem as secretárias velhas do escritório alheio, nem a pobreza das ruas sujas do centro velho, tantas vezes por mim percorridas, que já me que formam no espírito a náusea do cotidiano enxovalhante da vida.

F. Pessoa: E não sabemos a razão
           desse sentimento de prisão?

Rapper 1: São as pessoas que habitualmente me cercam, são as almas que, desconhecendo-me, todos os dias me conhecem com o convívio e a fala, que me põem na garganta do espírito o nó salivar do desgosto físico.

Rapper 2: É a sordidez monótona da sua vida, paralela à exterioridade da minha, é a sua consciência íntima de serem meus semelhantes, que me veste o traje de forçado, me dá a cela de penitenciário, me faz mascarado e mendigo.
 
F. Pessoa: É muito louco olhar as pessoas
           A atitude do mal influencia a minoria boa
 
Baudelaire: A vida voa e o futuro pega
            Quem se firmou, falou 
            Quem não ganhou, o jogo entrega 
 
F. Pessoa: Mais uma queda em 15 milhões
           Nas mais ricas metrópoles, suas várias contradições  
 
Baudelaire: É incontável, 
 
Rapper 1: implacável,
 
Rapper 2: inaceitável
 
F. Pessoa: Ver o lado miserável se sujeitando com migalhas e favores 
           Se esquivando entre a noite de medo e horrores 
 
Baudelaire: Qual é então a fita, a treta, a cena? 
 
Todos: A gente reza, foge, finge, disfarça, mas continuam sempre os mesmos problemas! 

Rapper 1: E, em meio de tudo isto, vou pela rua afora, dorminhoco da minha vagabundagem-folha. Qualquer vento lento me varreu do solo, e erro, como um fim de crepúsculo, entre os acontecimentos da paisagem. Pesam-me as pálpebras nos pés arrastados pelas ruas.

Rapper 2: Meu passeio calado é uma conversa contínua, e todos nós, homens, mulheres, casas, pedras, cartazes e céu, somos uma grande multidão amiga e inimiga, acotovelando-se de palavras na grande procissão do destino. Mas então me pergunto: somos reféns do destino ou criamos o mundo com nossas escolhas?

Todos: E súbito, de aço, um dia infinito estilhaçou-se... (som de explosão)

FIM

Nenhum comentário: