Com Vagalumes sem noite / contos entre sombra e luz, Artur
Ribeiro Cruz debuta no que classicamente se denomina gênero narrativo. Poeta de
sofisticação atestada por seu “Semanário do Corpo” (2015), obra também de
estreia no gênero lírico, Cruz mostra-se igualmente exímio no manejo preciso da
contação de histórias a partir de combinação ímpar entre ética, técnica,
temática e estética. Embora técnica e estética estejam quase sempre amalgamadas
na construção literária, Artur não deixa dúvidas de que é da primeira que
emerge a segunda. Por sua vez, as opções temáticas, desenvolvendo dilemas
éticos profundos, acabam por definir o ritmo, a cadência e as opções
morfológicas e sintáticas realizadas pelo autor no encadeamento e progressão
dos elementos narrativos, de maneira especial tempo, espaço e personagens.
Não por outro motivo,
os nove contos que compõem o livro apresentam, por exemplo, distintas e
combinadas formas de grafar diálogos: entre aspas e no corpo do texto em “A
última ceia”; com o clássico travessão em “Corcel afogueado, ou o périplo de
Orosmindo”, “A procura” e “Tio Valdim”; discurso indireto livre mesclado com
aspas em “Canção noturna” e “Notas de solidão”; alternância linha a linha entre
narração e diálogo aspado no final de “Arquitetura de um voo” e principalmente
com linha a linha de diálogos aspados em “O retorno do cavaleiro andante”; por
fim, recurso do uso do itálico em “Um sofista”. Cada opção gráfica parece
servir de maneira específica ao tema desenvolvido, gerando efeitos estéticos
diferentes conforme o conto, mas definitivamente apropriado ao desenvolvimento
de cada história. Esse procedimento parece mostrar-se presente nas mais
diversas instâncias de análise e apreciação do texto de Artur.
Os contos aparentam
ter em suas facetas visíveis distintas, por exemplo, no caso específico da manifestação
peculiar gráfica dos diálogos, o que se observa em sua face invisível, aquela
do significado, não, por evidente, a do sentido somente vocábulo a vocábulo,
mas a do efeito de sentido advindo da relação entre o tecido semiótico interno
a cada conto e a função externa de uns com os outros, entre os nove
apresentados, tornando-os, cada unidade, um signo completo e complexo, só
percebido se em sua totalidade e se na ludicidade enredada por seus diversos
elementos em diferentes camadas do plano da expressão e do conteúdo da obra. O
nono conto ironiza essa suposta unidade, mas torna-se ele próprio a 'prova dos
nove' de que o livro é um todo organizado, arquitetado.
A técnica narrativa de
Cruz é ainda percebida no controle esmerado, seja para mais ou para menos,
tanto da extensão rítmica (fraseado, paragrafação, recursos de oralidade),
quanto da modulação temática (variação delicada e cortante do assunto e da
perspectiva) e da narração (controle do que o leitor deve ou não saber sobre o
que se conta, uso da primeira ou terceira pessoas). Esses elementos, associados
ao gran finale de cada conto — incluindo
o nono conto, que em si é um gran finale para o livro —, conferem à obra
um tom enxuto e exato, nos termos de Julio Cortázar, para quem o conto seria
uma luta de boxe vencida por nocaute, diferentemente do romance, vencida por
pontos. Os contos deste livro certamente nos nocauteiam. Mas ao modo de
Muhammad Ali. Com sutileza, firmeza, intenção, precisão e poesia.
Formado por sugestivos
dois 'versos', sendo o segundo uma espécie de
indispensável aposto do primeiro, o título do livro, como de toda obra
bem planejada, em si é uma síntese e metonímia de sua totalidade. De pronto, o
primeiro 'verso' (“iluminado” pela grafia em caixa alta) instaura um oxímoro: vagalumes sem noite. O
'verso/aposto' seguinte (contos entre sombra e luz [e não entre luz e
sombra]) completa a imagem paradoxal, como se algo (os pirilampos vaga-lumes?)
se interpusessem à luz (sem noite), gerando um espaço real mas de transição
onde justamente os contos se inseririam.
Essa imagem advinda do
título é decisiva para a fruição das histórias sombrias, mas repletas de luz
poética, escritas por Cruz. Ao contrário da estratégia de Poe, Artur acha o tom
soturno de seus contos não a partir da criação de suspense narrativo, como à
Hitchcock, mas a partir de combinação de diferentes técnicas, especialmente a
machadiana (ironia, refinamento, intertextualidade, diálogo com o leitor,
mergulho introspectivo, entre outras) e a roseana (efeitos sintáticos, transubstanciação
da oralidade, tom místico, ambientação simultaneamente interiorana e universal,
entre outras), em constante comunicação com um estilo que se poderia neologizar
de 'intercosmos', uma mescla da aguda visão sobre sua cidade natal, Sertãozinho
(interior de São Paulo), com o mais cosmopolita olhar sobre a sociedade e o
mundo.
Outra comparação que
se faria, imprecisa, por certo, é a de que a leitura de seus contos por vezes
poderia literariamente fazer recordar parte da opção cinematográfica de Lars
von Trier, com seu Dogville. Em seus contos, Cruz desnuda tanto o que há
por trás de muita sombra quanto – e principalmente – o que há por trás de muita
luz, ou do estritamente essencial das coisas. Em outros termos, similarmente ao
reggae do grupo Ponto de Equilíbrio, Vagalumes sem noite nos recorda que
"nem tudo que é negro remete a escravidão" e que "nem tudo que é
preto remete ao medo não". Ou que o excesso de luz cega tanto quanto a
escuridão, na máxima de Raduan Nassar. Mantido, portanto, o símile sugerido
pelo título do livro, não é difícil vislumbrar o caráter positivo da escuridão
em termos literais ou figurados. Literalmente quando se observa o que ocorre
com os próprios vaga-lumes (insetos), que estão desaparecendo da natureza,
entre outros fatores, pelo aumento da presença de luzes artificiais em áreas
onde eles se localizam, fato que os impede de utilizar a própria luz para
encontrar seu parceiro sexual, comprometendo assim sua espécie. Figuradamente
quando as sombras possam ser compreendidas como redenção, a ver nos
surpreendentes desfechos dos contos aqui expostos.
Se
Trier, no cinema, opta por um cenário invisível (sem paredes, janelas ou
portas), permitindo que o espectador veja os coadjuvantes em seus afazeres
longe do foco principal da ação, Cruz, embora pareça também optar por um olhar
essencialista, fixa-se no palco principal da ação (e inclui paredes, janelas e
portas), desfocando a lente, portanto, da “coxia, camarins e bastidores”, e
acentuando os efeitos que as gradações de luz têm sobre o visto e o entrevisto
exclusivamente no centro, numa espécie de releitura contemporânea
estética-filosófica-existencial de preceitos barrocos. Como se, usando um farol
poderoso, desejasse ver não [somente] o objeto iluminado pela luz, mas tudo aquilo
eclipsado por esse mesmo objeto. Entretanto, ao contrário do pessimismo das
também nove histórias da película Dogville, “Vagalumes sem noite”, ainda
que também mostrando a desumanidade que emanaria da humanidade, compõe um
quadro à brasileiríssimo e menos determinista da complexidade de viver, seja
nas metrópoles, seja no interior do país, seja sozinho ou em grupo.
Lembrando, pois, umas Fleurs
du Mal em prosa, permeia — que o leitor não se iluda — uma melancolia
sarcástica por todas as histórias de Vagalumes sem noite, amarradas por
um fio isotópico do campo semântico eufórico das luzes (“afogueado”, em Corcel
afogueado...; “arquitetura” e “voo”, em Arquitetura de um voo) ou disfórico das
sombras (“ceia”, em Última ceia; “noturna”, em Canção noturna; “solidão”, em
Notas da solidão), ou ainda — e sobretudo — uma mescla de ambos não só nos
demais contos, como no desenvolvimento modulado entre euforia e disforia nas
histórias mesmas cujos títulos sugerem apenas um caminho de leitura. Essa opção
parece de certa forma repetir literariamente o próprio trajeto etimológico do
vocábulo vaga-lume, identificado inicialmente em Portugal por caga-lume,
em referência às glândulas luminescentes da parte traseira do inseto nomeado.
Por pudor, trocou-se a letra C por V, gerando o significado de 'vagar', 'andar
sem rumo'. Vaga-lume seria, assim, o mesmo que “luz que anda sem rumo”
(e em plena luz do dia, no caso deste livro). Eis aí um outro traço que parece
comum aos personagens das nove histórias aqui apresentadas: igualmente ao
inseto, cujo tecido que emite a luz é ligado na traqueia e no cérebro,
dando-lhe total controle sobre sua luz, os personagens deste livro, embora
possam controlar a 'própria luz', perambulam sem rumo com sua inútil fosforescência
diante da aparente claridade da vida, que os invisibiliza. Este livro não teme
revolver a escatologia da luminosidade.
O que há entre a
sombra e a luz? Para a Física, no âmbito do princípio da propagação retilínea
da luz, em um meio homogêneo e transparente, como o ar, a luz se propaga em
linha reta, de modo que a formação de sombra (ausência de luz) e penumbra
(região parcialmente iluminada), dá-se quando a luz é obstaculizada em seu
caminho por um objeto opaco (todo objeto que não permite a propagação da luz
através de si). Metaforicamente, as histórias de Vagalumes sem noite se
interpõem nesse locus real mas fugaz, efêmero e contingente que dura o
quanto durar a luz ou o quanto permanecer o objeto opaco que a bloqueia. Por
extensão, é um livro cujas histórias, na expressão e no conteúdo, alternam-se
não dogmaticamente entre a razão e a emoção, entre a poesia e a prosa, entre o
clássico e a vanguarda, entre o local e o universal, entre o homicídio e o
suicídio, entre a musicalidade e a literalidade, entre a modernidade e a
pós-modernidade, entre Apolo e Dionísio, entre a sanidade e a loucura, entre a
submissão e a desobediência, entre a infância e a maturidade, entre a
ingenuidade e a maldade, entre a solidão e a multidão, entre o ideal e o real,
entre a verdade e o sofisma, entre a caridade e a crueldade. Todos sempre em
relação dialética.
O último conto, por
seu caráter metalinguístico e irônico, parece revelar o grau de consciência que
Cruz tem de sua literatura e da literatura. Aparentemente deslocado do tom dos
demais, este derradeiro insinua ser uma reflexão irônica sobre o procedimento
construtivo dos anteriores, essencialmente baseados na procura de uma alta
elaboração da linguagem e de um aproveitamento máximo dos elementos narrativos
tradicionais. É também uma gargalhada metalinguística sobre os rumos
pós-modernos da literatura e sua “desconstrução do gênero, dissolução do
enredo, busca que não progride”. Na dúvida, Cruz mostra-se competente tanto em
uma quanto em outra estética, como bem provam suas nove belíssimas histórias.
E por isso seu livro
merece ser saudado com grande entusiasmo.
Salve, salve, Artur!
Alexandre de Oliveira Martins é graduado e Mestre em Letras pela UNESP. Graduado em Relações Internacionais e Integração pela UNILA. Doutorando do Programa em Integração da América Latina – Prolam, pela USP.